QUESTIÚNCULAS
lisieux
Tu chegaste e depositaste em mim tua bagagem, fizeste do meu interior tua hospedagem. Não pagaste diária nem fizeste reserva; apenas abriste a porta e foste entrando, deixando a mala no meio da sala, instalando-te, estirando as pernas, recostando o corpo, aportanto o teu cansaço no meu peito e descarregando o teu desejo no meu leito.
Bem feito pra mim! Quem foi que disse que seria para sempre?
Na verdade, não posso te culpar. Jamais disseste que a mudança para dentro de mim seria definitiva... aliás, jamais tiraste a tua mala da sala, nunca arrumaste tuas roupas no meu armário, nunca dividiste comigo os teus espaços... apenas, te apossaste dos meus.
Deixaste, eu dizia, a tua babagem perto da porta, como um sinal de que podias partir a qualquer momento. Eu deveria ter me apercebido.
Enfim, chegou o dia de tu ires... e eu, perplexa, quedei-me sem ação.
Só queria saber porque tu, ao pegares tua mala, não puseste dentro dela o teu olhar. Por que não levaste o teu cheiro do meu travesseiro? O teu sorriso do espelho do banheiro? Por que não levaste o calor do teu corpo da almofada do sofá? O som da tua risada que se misturava ao chiado das panelas na cozinha?
Tu te foste... mas me deixaste no cabresto. Com a tua marca de posse no lombo, os estribos machucando a ilharga. Por que não me soltaste antes de ir? Por que não devolveste ao pasto a égua baia, livre para correr em disparada nas campinas?
Por que não me tiraste a ferradura dos cascos, a fim que eu pudesse empreender o meu galope de libertação?
E por fim... por que não levaste a tua sombra dos porões da minha alma?
BH - 27.08.03