SOBRE A ROUPA
Abri alguma porta, na memória antiga,
para um quarto escuro, remoto, perdido,
do qual tudo o que sobrou foi essa imagem
de intimidade duradoura.
Da penumbra até à luz, vinha o braço.
Sobre a roupa desarrumada,
por um momento mínimo eternizando-se,
a mão oferecia a palma à luz coada e brilhava
num grito mudo de pele quente,
o arrepio forte do ventre ao rubro.
Tudo o mais se esvaía em sombras
diante do espasmo impossível desses dedos,
abertos e curvados como garras,
que lhe acrescentavam relevos à palma.
Em linhas fundas,
onde misteriosos destinos tinham gravado
incontornáveis exigências de intensos amores,
havia-se inscrito aos poucos
a história dum percurso que terminava ali,
naquele momento esculpido em luz,
onde, mais alto que qualquer voz,
o silêncio envolvendo os gestos
falava do indizível em segredo,
e de doçura nos leves cuidados
com que um lenço garrido
emprestava cores de outras paragens
a uma lâmpada fria e indiferente...