SOBRE A ROUPA

Abri alguma porta, na memória antiga,

para um quarto escuro, remoto, perdido,

do qual tudo o que sobrou foi essa imagem

de intimidade duradoura.

Da penumbra até à luz, vinha o braço.

Sobre a roupa desarrumada,

por um momento mínimo eternizando-se,

a mão oferecia a palma à luz coada e brilhava

num grito mudo de pele quente,

o arrepio forte do ventre ao rubro.

Tudo o mais se esvaía em sombras

diante do espasmo impossível desses dedos,

abertos e curvados como garras,

que lhe acrescentavam relevos à palma.

Em linhas fundas,

onde misteriosos destinos tinham gravado

incontornáveis exigências de intensos amores,

havia-se inscrito aos poucos

a história dum percurso que terminava ali,

naquele momento esculpido em luz,

onde, mais alto que qualquer voz,

o silêncio envolvendo os gestos

falava do indizível em segredo,

e de doçura nos leves cuidados

com que um lenço garrido

emprestava cores de outras paragens

a uma lâmpada fria e indiferente...

Henrique Mendes
Enviado por Henrique Mendes em 25/11/2009
Código do texto: T1943970
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