ÁLBUM DE FAMÍLIA

Todos meus aniversários são

imensamente tristes

como se a cada ano me roubassem um pouco

não pelo que me perco de vida

mas pelo que deixo atrás de mim

um rastro de coisas por fazer

de idealismo vegetativo

como quem perde a consciência

num choque.

Todos meus aniversários são

imensamente tristes

como se soubesse

que de minha existência

o vácuo me acena como que

um lenço de despedida.

O que é dos vales, rios,

caminhos floridos,

hoje desertos de descobertas pueris.

O que de meus cuidados profissionais

lambendo os pés sujos de lama.

O que de meus pais já velhos

e taludos produtivos irmãos,

meu velho sogro português,

Ignacio (com gê), sotaque de Fernando Pessoa,

sonhador Sacadura e operoso Cabral

e minha riquíssima sogra

com a alegria cabocla das senzalas,

gosto de costas brasileiras e cheiro de pinhão e pipoca

de noite juninas, esvoaçando a saia no pulo da fogueira.

O que de minha mulher,

mãe que depôs o fruto germinado

na corrente da via crucis, como fora via láctea de albores.

O que é de mim, tosco e rude militar da

milícia popular brigadiana

que ouço no ocaso da meia-noite do novo dia

o idealismo do poeta-soldado

que pensa fazer versos

e na verdade nem sabe onde fica o

bocal do clarim que deve unir o Homem às Origens.

O que é de meu povo, sem etnia própria,

miscigenado na voracidade lúdica da história,

pedra escondida.

O que de meus alunos, também soldados,

termômetros e lunetas, com os quais penso

introjetar-lhes o futuro,

meus filhos adolescentes, muitos,

mais filhos ainda, na tarefa de preparar

o deslocamento das pedras nos caminhos,

conspurcando o intelecto, enquanto

a rosa-dos-ventos aponta as rotas.

E onde ficamos nós

que corremos sobre a eternidade

vivos,

como se fôramos a corrente do rio

que não escolhe o próprio leito,

nem sabe quando

o encontro com as grandes águas.

– Do livro FORÇA CENTRÍFUGA. Porto Alegre: ed. Porto Alegre, 2ª ed., 1979, p. 63:68.

http://www.recantodasletras.com.br/poesias/1921387