Cantiga Sombria
Não quero a poesia bela!
Que a beleza fique na tela, às claras,
Na cara dos velhos rejuvenescidos
– esses artistas sem estro,
Que teimam em não morrer.
Aqui, no quarto, sou noite,
Uma noite tão obscura
Que, se a pudessem ver,
Diriam ser ela o próprio berço da morte;
Uma noite dentro da noite.
Uma noite no fundo mais fundo
Da mais escura caverna;
Um escuro de outro mundo,
Onde nem o ar ousa entrar.
Onde as moléculas se dispersam, cegas,
E o medo foge aterrado consigo próprio.
Não quero a poesia bela!
Que poesia não se enxerga.
A poesia não é coisa, que se pega...
Eu quero é a poesia torta.
Eu quero a poesia informe.
Eu quero a poesia oculta.
Eu quero a poesia a esmo.
Escura. Perdida. À parte de tudo,
Até de mim mesmo.
Que o belo fique lá, vivo,
Na indolência intensa dos museus.
Aqui, por dentro, sou treva.
E é do meu peito-caverna
Que ecoa a cantiga triste dos meus dias.
Que a poesia é, sobretudo,
Um estado de espírito.
E, hoje, aflito, não quero a poesia bela!