Rapinagem
Ao abrir meus olhos a cada novo amanhecer
Abrem-se também infinitas possibilidades
Nelas imagino que poderei viver a vontade
Ou quem sabe seja ali mesmo que me acabe
Sei que o tempo passa para todos os outros
Mas sinto que sou somente eu que passo por ele
Sem sequer deixar as marcas mais indeléveis
Sem deixar minha imagem, mesmo que seja de leve
Sem deixar a mim mesmo que agora perde-se
No momento em que acordo cessa a possibilidade de sonhar
Não permito-me mais estar fora de mim a entregar-me
A essa dolorida e imensa vontade de novamente voar
Após abrir meus olhos não vejo a mim, mas a esta sociedade
Que me cerca com seus terríveis tentáculos e novamente sufoca
Como se fosse a dona de minha carne, antes mesmo de estar morta
Tolhe meus movimentos, abarca a minha essência, nutre-se de mim
Imagino se foi somente para prestar-me a isso que eu vim
Habitar dentro de uma crosta que me repugna e constrange
Ainda tendo que ser recoberta por trapos qual fosse a mortalha
Que recobrem uma decência que na verdade jamais existiu
Por isso sinto esses corvos o tempo todo pairando a minha volta
Querendo alimentar-se da carne que, aparentemente, ainda tem vida
Eles não querem mesmo aguardar que ela esteja realmente morta
Vivem dos meus tristes despojos e a cada dia tem mais pressa
A cada novo amanhecer aumentam ainda mais a ferida
Sabem que não importa para onde vá um dia a existência cessa
Nessa ânsia de possuir-me abrem chagas cada vez mais profundas
São essas que me recobrem ora tão virulentas e nauseabundas
Querem beber do meu sangue enquanto ainda encontra-se pulsante
Parece que esses seres nefandos desejam bem mais do que a aparência
Eles que só cobiçavam essa crosta a qual me dá essa forma repugnante
Querem agora roubar-me todo o viço e levar até mesmo a minha essência.
Brasília-DF, 30 de outubro de 2009.