Autocrítica

Estou naquele estado, entre o sono e o despertar de um novo sonho que jamais será sonhado.

Entre o momento em que raia um novo dia ou irradia, para mim, um novo amanhecer,

um novo objetivo para viver, um eterno renascer.

A vida que me deu guarida já não é a que me suporta, pois nem mesmo eu a suporto ainda.

A vida que me renegou a gloria infinita do jamais ter sido eu mesmo, já não me deixou a certeza de nunca ter sido o mesmo eu.

O mundo que hoje me abriga, me suporta, me ilumina, me enobrece, é o mesmo que me despoja de tudo que nunca fui e que nunca serei.

Além de ser o nada absoluto pelo qual tanto não ansiei e que, na verdade, nunca deixei de não querer sê-lo.

Nunca quis ser eu mesmo e nunca quis deixar de ser o eu que nunca existiu em mim mesmo.

O mundo é para mim uma carga tão pesada que chega a ser maior do que a que eu não o sou para ele.

E mesmo assim, nem mesmo eu me suporto, quem dera ele também deixasse de suportar a mim mesmo.

Esse mundo violento me apraz e me dá a paz dos que estão em eterna desarmonia e jamais aceitam que o que deveriam não aceitar é realmente inaceitavelmente aceitável.

Esse mundo é tão crível que deixa de nunca ter sido incrível e, no entanto, é tão detestável quanto o dejeto do mendigo que também eu nunca gostaria de não deixar de jamais tê-lo sido

Pois, se o maior poeta entre todos os que jamais deixou de nunca existir, que sempre se considerou o mais absoluto nada e sentiu inveja do mendigo que nunca foi, se assim o sentiu. imagino eu, que nunca serei, sequer, o suor do mendigo que ele nunca foi.

Que serei eu senão um nada tão absoluto que nunca deixarei de ser esse ser inimaginável que tenho sido desde que aprendi a não me reconhecer em mim mesmo.

Que serei eu senão eu mesmo? tão detestável aos meus olhos que chego a ser amável por aqueles que nem imaginam o quão detestável sou para mim.

Que serei eu? Se não posso ser nem mesmo o nada, pois se o maior de todos foi nada. eu, para ser nada, ainda teria que ser infinitamente melhor do que nunca fui.

Se entre nós, reles mortais, julgar-se o melhor é somente para os que não sabem que são o pó mais abominável e que nem sequer para isso eles servem, qual eu que não sou indigno do pó que nunca revestiu minhas sandálias por que sequer as possuo. Ainda mais ao pó que nunca deveria não tê-las empoeirado.

Que resta a mim ser? se não posso ser pó, nada e sequer posso deixar de ser alguém tão detestável como jamais deixei de não ser!

Sou apenas um ser, inominável, por mim mesmo, imponderável na minha aflição de nunca ser menos do que o pó que, realmente, nunca deixei de não sê-lo.

Que serei eu afinal? Sou o tudo e o nada absoluto, sou resoluto, sou inculto, sou proscrito, sou o que nunca deixarei de ser e que nunca desistirei de deixar de sê-lo.

Sou a mais inominável das criaturas, impura, ilegítima, cópia fajuta de mim mesmo, invenção que nunca deixou de não dar certo.

Sou o anão imenso de meus menores pesadelos, aquele que sonhou ser grande sem nunca deixar de não sê-lo.

Sou a divina criatura satirizada pelo anseio de ser satiricamente satirica, aos olhos de todos os que jamais a deixarão de não enxergar e jamais deixarão de sentirem que ela é a mais grotesca das criaturas doces e agradáveis aos olhos dos que não a vislumbram, como ela realmente o é, senão por sombras difusas postas trás dos maiores montes entre os mais insignificantes jamais concebidos pela tênue imaginação inumana do homem.

Quero ser essa criatura que tão bem eu não soube descrever por sequer acreditar que ela exista, senão em minha incapacidade de imaginá-la como ela jamais deixará de não ser.

Quero ser o ser divinamente disforme dos meus piores pesadelos, quando vislumbro o mar em calmaria junto ao horizonte do meu inalcançável destino.

Paisagem muda que grita aos meus ouvidos que sou capaz de ser tudo enquanto continuo a ter certeza absoluta que nem mesmo posso ser nada, por esse lugar já estar reservado aos que foram infinitamente muito maiores do que eu jamais teria deixado de não ser.

Sou o que nunca deixei de não querer deixar de ser, sou o meu próprio ser carente de mim mesmo e de tudo que vem de minha essência, maculada pela indecência de ser eu.

Sou menos do que o nada que eu sonho nunca chegar a ser, sou a estrela perdida, desprovida de luz, desprovida de alma, desprovida de céu, desprovida de ser estelar.

Sou o mar sem água, o fogo sem calor, o horror da placidez que me domina e me transmuta em mim mesmo, o que jamais imaginei que nunca poderia deixar de ser.

Esse que me possui dia a dia e que me faz ser cada vez mais eu mesmo, e que eu nunca conseguirei abandonar ao nada.

Sou o que nunca deveria ter sido, sou o que há muito jamais deveria ter deixado de não ter partido, sou o que sou e isso é só o que nunca me bastará.

Sou a sombra de mim mesmo e isso me torna o negro clamor de minha alma aprisionada nessa cela purga, infecta, decadente, de mim mesmo.

Sou o que clama por deixar de ser eu mesmo, sou o que quero ser e sou o que nunca deveria ter sido.

Mas sou e nada posso fazer, senão continuar sendo o que jamais deixarei de deixar de não ser. Sou, somente, o eu infinitesimal.

Meus agradecimentos a gentil colaboração de minha amiga Lualuna.

Brasília-DF, 04 de outubro de 2009.