O que há?
 
Há uma porta aberta
E uma janela fechada
Há um medo apenas
Uma vida apenas
E uma morte apenas
Há um só tempo
Chamado eternidade
Não há passado
Não há futuro
E nem há presente
 
Há a existência somente
Um olhar perdido no espelho
Há somente a inconsciência
E todos os sonhos confusos
Há somente passos e não caminhos
Há somente silêncio e não há poesia
Há tudo de imaterial e intocado
Há espíritos sobre as águas
Há dúvidas e não ciência
Há perguntas sem respostas
 
Há apenas uma voz interior
Que nos chama para fora
Um olhar perdido na imensidão
Uma lágrima apenas, furtiva
Para todas as dores do mundo
Há somente a respiração ofegante
A corrida frenética na caçada
Há sangue quente nas mãos
E o não saber se caçamos
Ou se estamos sendo caçados
 
O que mais há?
 
Há somente um grito no escuro
A angústia e o suor nas faces
Há apenas uma noite mal dormida
Uma madrugada que avança
Há somente um dia que não chega
Uma porta que dá em outra porta
Milhões de portas diante do abismo
Há profundezas sem fim
E somente asas partidas
Há um vôo no infinito
 
Há somente um silêncio aterrador
Apesar da vontade de não calar
Há apenas a palavra contida
Cativa desse silêncio absurdo
Há poemas mortos, muitos
Há poesia renascida das cinzas
Há somente tristeza, toda
Há incerteza do sorriso
Há esperanças enterradas
Um deserto de cruzes fincadas
 
Há mães velando quartos vazios
E pais embalando berços quebrados
Vidas inteiras sem história
Tanta gente sem memória
Há apenas um lado, só um lado
O lado de lá que anula o lado de cá
Há tanta solidão na multidão
Tanta gente falando com as paredes
Há somente o horror humano
De não ter mais para onde ir
 
O que ainda há?
 
Há duas mãos cobrindo o rosto
Há o temor de encontrar
O receio de ver, de poder ver
Há hesitação em cada olhar
Uma renúncia atroz de voltar atrás
Há a incapacidade de se refazer
Há uma floresta dentro da floresta
E mais uma noite por cair
Há o que não se pode recolher
Mil pedaços do que se desfez
 
Há somente uma quietude imponderável
Uma tristeza que espreita os passos
Mistura-se à melancolia dos momentos
E torna-se angústia no passar das horas
Há essa vontade de ficar jogado no chão
E derramar de vez todas as lágrimas
E libertar enfim todos os gritos
Expurgar todas as possíveis dores
Esquecer para sempre todo o sofrimento
E matar de uma só vez todos os amores
 
Há apenas esse canto espalhado no ar
Essas palavras que nunca vão voltar
Há apenas outros cantos que não vão soar
E tantas outras palavras que não irão brotar
Há apenas o desconhecido a nos guiar
O vazio do infinito que nos contém
Há tão somente meus olhos sem luz
E tudo o que não pude ver
Há na frente apenas morte e desolação
O resto de tudo o que não pude viver
 
O que há então?
 
Há somente a alma arrasada
Como uma cidade bombardeada
E não sabemos quanto é destruída
Porque só vemos a destruição
Há então sangue sobre a terra por nada
Há apenas desamor por tão pouco
Há infelicidade em tantos rostos
E desespero em tantos olhares
Há somente tantos desencontros
Há só uma busca que não se busca
 
Há apenas uma outra fuga
Mais uma estrada que leva a nada
Esse estranhamento meramente humano
Esse querer o que não me pertence
Esse poder de tomar o que não é seu
Essa capacidade de não olhar o outro
E de estranhar o que vê em si mesmo
Esse lugar ermo a que nos condenamos
Há somente a solidão como uma jaula
E nosso olhar atônito para uma porta aberta
 
Há somente essas palavras que sobreviverão
E prevalecerão sobre todos os nossos dias
Há somente tudo o que há para se compreender
Mas nunca haverá nada para esquecer
As palavras e as lembranças também morrerão
Junto com as horas que haverão de acabar
Juntos com todos os sonhos desvanecidos
Junto com toda a matéria dissipada
E toda a angústia da sabedoria
Irá se revelar nada, somente o nada
 
Então, ainda assim, o que mais há?
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 23/09/2009
Reeditado em 22/09/2021
Código do texto: T1827104
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.