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Estilhaços de poemas, meu espelho se quebrou!

Recolham os cacos! E me recomponham o rosto com o mesmo desgosto

Juntem palavras do que não sei escrever em agosto

Recolham os cacos e o resto do que agora sou

O espelho por que não me via quando via

Era um sonho de bicicletas no parque

E cotonetes espalhadas pelo chão

Bagunça enorme de brinquedos de criança

Um adulto que fui a ralhar com elas por arrumação

As palavras me atraem e traem segundas intenções

Das palavras mesmas que estão em mim e de mim saem

Canetas andam sozinhas pelo papel e cospem cacos

Garcia Lorca e Shakespeare convivem com o despertador

E Cervantes amanhece ao lado da Bíblia

Uma goteira molhou-me três ou quatro diálogos de Platão

Isqueiros e disquetes sobre a mesa do computador

Dão a idéia de que a vida cabe numa pequena ilusão

Um teclado me chama pelo nome com todas as letras

Os lençóis não resistem eu revirar-me na cama

Uma mulher num desenho sempre me olha

Mas não me chama, será que me ama, ou me quer?

A tábua de passar roupa encostada na prancheta de desenho

Atrás da porta calçada com um pedaço de madeira roubado

Um pássaro de papel em cima do monitor só voa quando não olho

Quatro corujas de barro na janela da sala só piam quando não estou

Ovos de insetos depositados na roupa no varal

O tempo conversa comigo em tic-tacs incessantes

E eu o ouço em sinfonias de Beethoven

Dezenas de canetas e lápis de cor me escondem a mesa

Uma idéia de uma vela acesa escurece-me a visão

A noção de esvaziar o espírito é varrer a casa

E para varrer o chão peço licença à joaninha e seu séquito de insetos

Nunca limpo o fogão e a geladeira velha não vai embora

A samambaia aflita quer beijar o chão apaixonada

E já está em uso enfim a cafeteira elétrica

Mas a lua não passeia há dias minha sacada

E eu sempre durmo no mesmo lado da cama

Porque o outro lado é seu e dormi no meio dessa frase

Acordei às três num cigarro aceso, um café frio e um arrepio

Num arremedo de vida no inferno sentindo tanto frio

Prometo deixar você em paz no próximo verão

Só se o ventilador me olhar ao acaso girando

Os papéis de desenho dormem debaixo da cama

Perdi na mente dois poemas porque pus os pés no chão

Um deles consegui escrever nas areias de algum deserto

Mas a tempestade tinha que vir e apagar meus passos e o poema

A árvore ainda bate na janela, ela é dona do parque

Um caminho fictício afasta-me de onde nunca vou

E deu-me desses dias de mancar da asa esquerda

Meus olhos não conseguem ver paisagens que existem

Acordo da realidade mergulhado no sonho e não sei qual sou

A água dança descendo o ralo da pia e me hipnotiza

Os discos cantam sozinhos todas suas canções

Os vizinhos barulhentos não me ouvem a respiração

Se eu abrir a porta vou dar no mesmo mundo de escadas

As ruas não conhecem quem nelas passa sem um bom dia

O céu engana o guarda-chuva que fica em casa

Os trens têm seis bocas que nos engolem e cospem

A cidade tem edifícios para nos fazer pequenos

As calçadas são estreitas para não estarmos serenos

O elevador não tem janela, tenho que inventar uma

Sétimo andar do sétimo céu leva-me ao inferno

Meus olhos mudam as paisagens das janelas

E montanhas ao longe inexistentes mudam meus pensamentos

Em ter de haver lagos e ondas dos mares e piratas barbudos

E moças sorridentes e insinuantes a seduzir-me o espírito

Os carros não sabem aonde seus ocupantes vão

O chão e o céu fazem sanduíche da gente

Eu ando duas horas e não encontro o mar

Uma caverna de boca aberta me encontra na próxima esquina

Monstros e fantasmas vêm dançar num baile que não dei

E eu andei por tantas festas procurando alegria alheia

Minha mão cheia era tanto do tempo a escorrer-me pelos dedos

Garrafas e copos vazios zombam dos bêbados no bar

Crianças que não saíram da ilusão miram-me com olhos famintos

Não tem amor nas prateleiras do supermercado

Tenho um estoque de dores para as horas propícias

Nenhuma lágrima comparece aos olhos quando necessário

Uma caixinha de brinquedos escondida atrás dos livros

Mantém encarcerada toda a infância de minha vida

Não tenho tempo de ler todos os papéis que acumulo

As madrugadas não me chamam mais pelo nome

E as manhãs me trocam por quem acorda primeiro

Um exorcismo estranho conclama mil demônios

E mil orações simplesmente afastam todos os deuses

E o silêncio nada mais é do que um diálogo com fantasmas

Um barco a velas singra o mar de minha sala

Um monstro marinho dorme em meu banheiro

E eu acordo para morrer o dia inteiro

Enganaria a morte se dormisse mas acordo

Eu fico aqui mas sempre faço as malas

As cidades não me esperam afoitas

Já tive a sensação de não ter aonde ir

Mas não adianta querer explicar, basta não ir

Numa panela grande cozinho toda minha tristeza

E o amor me come cru, sem sal e nem tempero

Todas as perguntas levam a uma única incerteza

E toda a serenidade prepara o grande desespero

Caí de estar deitado no chão e sou estilhaços

Acorrentado numa nuvem no céu estou seguro

São ventos todos os meus pensamentos

E por que há músicas tantas na memória?

Um menino corre em meu passado com asas nos pés

Mas agora há de haver eu ter perdido todos os quintais

E os lugares secretos onde brincar de viver nunca mais

O que meus olhos vêem está no lado de dentro

Nenhum cavaleiro do apocalipse me visitou hoje

Mas suas trombetas anunciaram a era do silêncio

Enquanto uma águia voa no fundo de minha mente

E um caramujo rasteja no divã de minhas vontades

A verdade nua e crua pede esmola na praça

A graça da desgraça é sentir-se assim único

Uma mulher que passa range os dentes

As sementes do mal nascem em flores

Uma mãe chora um quarto vazio

Um pai embala um berço quebrado

Um soldado luta uma guerra que não é sua

Um menino chuta seu violino na rua

Um mundo acaba um piscar de olhos

As folhas pisadas e mortas não têm história

E nem as árvores têm infância

Essa inconstância aprendi agora, fora de hora

A hora que passa é a mesma que vem e a que foi

Não tenho tempo para o tempo que me devora

E o que me devora são dois olhos que me agarram

E me sufocam todos os abraços não dados

E todos os sentimentos não revelados

 

 

2

 

Tenho fome dos sons de violino

Meu nome escreve-se com sangue nas estrelas

O céu me olha por trás dos prédios

Meu corpo velho esconde um menino

Viajo no tempo pelo cheiro das estradas

Meus passos são degraus de infinitas escadas

Conheço as faces da morte e seus assédios

E todos os remédios não me curam essa doença

Essa descrença em minhas palavras cansadas

O que me faz cuspí-las em busca de alento?

Tenho uma sede que me segue de nascença

E essa fome guardei para a hora da morte

Um cinzeiro cheio de minhas horas fumadas

Aquilo tudo que me mata é do que me alimento

Mil palavras de mais de mil poemas

Eu trocaria por apenas um beijo

Entregaria o corpo e perderia a alma

Afundaria no Hades buscando a luz de seus olhos

E meus olhos entregaria, tão tolo, por seu colo

Cai a noite como um desatino

Faz-se um destino não de tijolos

A argamassa de minha paciência é presciência

A rua vazia me conta que você não vem

Um por um apagam-sem todos os candelabros

E na escuridão é onde tudo se faz visão

Eu tento inventar dar tudo o que não se tem

Os telefones se calam para ouvir Vivaldi

Eu lhe dou a chave, a porta e a casa

Eu lhe dou as cores de meus melhores dias

E se quiser não vôo mais para lhe dar asas

E todas as horas que tenho para velar-lhe o sono

E todos os meus atos para cuidar-lhe da vida na vida

Eu lhe dou a vida que é apenas o que tenho

Nas noites que são eternas sem auroras vindouras

E duradouras e bem-vindas todas essas flores lindas

Que planto e colho em nenhum jardim

Quando tenho fome e sede de ser só o que sou

Quando o que sou é estar quieto a um canto

Em que a noite me cobre com nenhum manto

E o que de mim arranco é só o que sou

E dei de ser somente tudo o que estanco

O que em mim permanece eu esqueço

Não sei mais sentir o que fica

Sentindo somente tudo o que se vai

 

 

3

 

As palavras são estilhaços de poemas

E os poemas cacos de um tão grande dilema

Põe-me de quatro a vida real hoje e me sodomiza

Por uma espécie de prazer nenhum que não sinto

Um juntador de estilhaços... que ofício!

Façamos filas! Entremos em filas! Adoremos filas!

O pior de uma vida anuncia o pior

Na grande avenida vem e vai, entra e sai

Sobe e desce, o elevador te esquece

E tem toda a gente um chão fictício sob os pés

As marés de sonhos são baralhos de cartas

Uma bolinha de gude perdeu-se em meu pensamento

Um regimento de soldadinhos de chumbo invadiu-me as lembranças

Caiu-me um último castelo de vãs esperanças

As alegrias são plantadas em vasos de sofrimento

Por um reles momento uma dor me alivia

Num amor que me alicia, a findar no fim do dia

No fim dos tempos há de haver silêncio

Um vazio onde o nada que somos é quase tudo

Já que não somos o sonho de ninguém, mas talvez o pesadelo

Um verme que me engole me corrói por dentro

Dentro de mim uma gaveta trancada de segredos guardados

Um vazamento escoa-me a alma pelos poros

Um porão e um sótão entulhados de cacos

Todas as luzes apagadas de minha casa de espelhos

 

 

4

 

Eu penso que acaba e eis que recomeça

A lida da poesia que me atormenta fielmente

Espelhos se quebram e poemas não se calam

Chovem palavras tantas em meu silêncio

Atordoado eu me coço e sangro de inspiração

Quando resolveu a lua chorar uma chuva noturna

E ainda agora o vai-e-vem de trens, pega o teu!

Porque o meu não vem e quando vem não me leva

Mais um cigarro bebe a chama do isqueiro

Haverá sempre mais um copo a vomitar-me na boca

Uma mulher louca procura pelo filho que não teve

A barba de Billy Paul quando cresce, ele ensandece

E fala todas as línguas numa língua que ninguém conhece

Há só uma mulher que me faz voltar o caminho

Carregando todo o peso da glória

Sexta-feira aziaga sizuda tão benfazeja

Deveria haver um coreto em cada hospício

Para se poder cantar a loucura sem constrangimento

Os bancos das praças perguntam pelas pessoas

Um avião riscou o céu de meus tormentos

No alto de uma montanha alguém por um segundo pensou em mim

Os mapas coloridos convidam a viajar as pinturas todas de Van Gogh

Enquanto todos estão cegos de uma orelha

E não podem ver a música que sai de todos os bueiros

Não ouvem as cores lindas do arco-íris

Quando eu andar sobre as águas do esquecimento

E quando ovelhas pastarem numa praia

Terei sonhado uma mulher de saia passear na praia de minha ilha com sua filha

E o que resta de mim perdeu-se nas ondas na última mensagem na garrafa

Quando no mar dos olhos voou mais uma solitária gaivota

Há sempre dois ovos no ninho das ilusões

E dois leões na floresta de todas as paixões

Eros e Tânatos jogam amarelinha em nenhum chão de nenhum universo

O sol pensa que gira em torno do mundo

Uma jaula de porta aberta nos prende

A razão é a tranca da imaginação

A realidade é um tapete vermelho na porta do inferno

Uma rua de sonhos é o melhor caminho

Não vejo mais terra, não cheiro terra, não piso terra, não como terra

Todo mármore queria ser acariciado por Michelângelo

Enquanto Da Vinci pintasse o arco-íris

Quando o mundo acaba resta poesia

E ninguém escreve o último verso

Porque o inverso de calar é calar ainda mais

Mas agora nada sei de nada que sei

Sei apenas que na praça de meus desejos há um coreto

E há de haver sempre por assim ter de ser

E nele por ser incapaz de por meus versos na casaca apertada de um soneto

Vesti a pijama larga e folgada de um quase soneto do medo de te perder

Mas hoje brincou a vida que mente não me ferir

E que achou de por em mim a ilusão de mentir

Que é assim tão possível te esquecer

 

 

Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 22/09/2009
Reeditado em 22/09/2021
Código do texto: T1825260
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