SER MAIS UMA VEZ

Não gosto de ler

livros que são os mais vendidos

nem de dar esmola a mendigos

nem de comer o que não gosto

Em qualquer coisa eu aposto

e ganho sempre que não perco

de vista os meus cuidados

Na carteira dois cigarros

que eu nunca vou fumar

Noutra esquina dobro um bar

pr’aquela vista certeira

Elemento, pingadeira...

que noutra curva se esconde

que nem perto nem me longe

na beira do castiçal

O mato é belo, matagal!

e estou arrependido

por lhe ter dito o que disse

sem ser canalha ou criancice

Escute o que lhe olho

o que lhe unto, quanto me agito

o que sussurro o quanto grito

Não encaixa como o seu gosto

em vocativo ou aposto

É razão da existência

de toda minha incoerência

sacrossanta e profana

E das vinte e quatro semanas

em que alma e corpo tão felizes

quanto atores, minhas atrizes

O seu beijo, o seu afago

o seu gosto de fumaça

O meu medo de ser só

ter da caça o pior

e de ser eu a levar o tiro

agora canto, eu respiro

E continuo abraçando

toda esperança de voltar

a poder ler o que gosto

como se não fosse a perder

Afagar, apetecer,

seu corpo jovem e branco

seu cabelo cor-de-mim

e poder rimar jasmim

com o canto d’outro banco

Hoje eu me levanto,

mas eu quero deitar de novo

Nem elite nem do povo

nem tristeza de cantar

nem um jeito de dançar

Simplesmente uma esperança

daquelas de criança

de poder ser mais uma vez.