A maior dor do mundo
(Mércia Falcini)
São muitas as dores do mundo... Ah, se elas fossem mensuráveis, haveria dor maior do que a dor de perder alguém amado? Mas, elas são tantas e todas rasgam minha alma:
fome,
miséria,
egoísmo,
inveja,
exclusão social,
racismo,
saudade,
terrorismo,
morte.
Dor tem de transformar: da saudade surgir o reencontro. Do cansaço, o descanso. Da fome, o alimento. Da doença, a cura. E da morte? Qual é a transformação da morte? Morte e vida conservam o mesmo mistério: para aonde vamos? Quem somos? Por que somos?
Sem respostas e convencida de que a morte é o destino da vida, precisando apenas encontrar um argumento, lembro Gilberto Gil, que canta: “(...) Tem que morrer pra germinar, plantar n’algum lugar, ressuscitar no chão”. E canta também a vida, embora nem sempre afine o tom, para embalar as dores do mundo e da alma de quem chora a saudade da partida.
Afinal, para isso existe um Deus: explicar o inexplicável, atingir o inatingível, compreender o incompreensível. E nos carregar no colo quando a dor parece insuportável.
Por que lembrar Rachel?
(Mércia Falcini)
Ela não queria escrever sua autobiografia, mas, seduzida pela afetividade da irmã, quase filha, de certo alma gêmea, escreveu sua história de forma encantadora... Tantos anos esteve comigo durante os últimos meses e como um milagre ou coincidência, como prefiram, no dia em que fechei a última página do livro, a autora fechou os olhos para a vida.
Rachel de Queiroz morreu silenciosamente, feito a revolução que travou na literatura brasileira. Ela, a primeira mulher a conquistar a imortalidade na Academia Brasileira de Letras, escreveu a história do nosso país. E abriu caminhos: com fibra, coragem, e determinação - talvez, como ela própria tenha dito, características não suas, mas inerentes à juventude – enfrentou políticos, sistemas e cartéis. Sempre em nome da ética e da cidadania. E não foi em vão, sua obra revela a legitimidade da consciência política, cultural e intelectual com que se dedicou ao mundo das letras. Assim é seu livro de memórias: mais do que sua história, Tantos anos conta a história do nosso Brasil e da nossa gente. Uma interpretação genuína do sertão seco do Ceará, num jeito leve e sedutor de invadir lembranças, suscitar sentimentos e marcar história.
Preocupada com o papel da mulher na sociedade moderna, Rachel rasgou preconceitos e cavou seu espaço (...) e de todas as que vieram depois dela. Hoje, quando gozamos dos diretos adquiridos, profissional ou maternalmente, bem pouco nos lembramos do caminho trilhado: uma longa história escrita, a punho, por bravas mulheres.
Mas, o motivo gerador destas poucas palavras não se encontra na tentativa estúpida de mais uma homenagem pós-morte - gesto hipócrita de lavar a consciência e pedir desculpas pelas faltas em vida – e sim, no intenso significado da sua obra, que conserva o poder histórico nas palavras escritas, que eterniza a possibilidade do aprender sempre. E que conforta a alma dos brasileiros que choram o descaso cultural do seu país.
Um país que não aprendeu a valorizar seus escritores e intelectuais e que, por isso, não registra nas memórias do seu povo a lembrança de ter lido seus livros nos bancos escolares. Desde muito tempo, os livros didáticos trazem os resumos das obras dos nossos escritores, como se isso bastasse. São poucas as escolas que possibilitam o contato com a obra: os resumos são mais rápidos e fáceis. O trabalho diminui e o aprendizado também.
Afinal, num país com pressa, de ações imediatistas, por que perder tempo com leituras? Por que lembrar Rachel, Drummond ou Machado de Assis?
Amor incondicional
(Mércia Falcini)
Há algum tempo venho pensando no sentimento que envolve a relação entre pais e filhos. Confesso que só o compreendi quando experimentei: o amor incondicional. E por vivê-lo intensamente é que as notícias trágicas de violência física ou emocional entre pais e filhos tanto incomoda... E assusta. Basta acompanhar atentamente os relatos dos pais que mataram seus próprios filhos, num gesto de desespero extremo, quando já não mais podiam conter os comportamentos dos filhos viciados em cocaína.
Acontece que amor de pai e de mãe não é assim tão fácil e maravilhoso como versam os grandes poetas ou como retratam os grandes artistas.
Amar o filho é um longo exercício de desapego de si próprio, de reflexões contínuas, de remorsos e arrependimentos, de certezas e dúvidas. É a busca incessante da atitude certa, de leituras que orientem, de horas gastas na terapia.
Amar o filho é deixar de fumar, de beber e vigiar pelo resto da vida os próprios atos para que o conselho e o sermão tenham coerência. É manter sintonia entre o gesto e o discurso. E ainda assim corremos riscos. Por mais que amemos, jamais saberemos se o que fizemos é suficiente para o desenvolvimento feliz e salutar dos filhos.
Mas o amor de pai e mãe é incondicional e o resultado não importa. Aliás, bem pouco nele pensamos quando acordamos na madrugada fria para verificar se estão cobertos, quando deixamos de assistir ao programa favorito da TV para ajudá-los na tarefa escolar ou quando desistimos de comprar a roupa nova para garantir o brinquedo do Natal.
A roda-viva, que ora nos faz filhos e ora nos faz pai ou mãe, ensina no tempo certo a lição desse amor e com ele nos permite a compreensão da sua imensurabilidade. Mário Quintana, nosso sensível poeta e escritor gaúcho, quando em sua poesia conceituou o amor, certamente experimentava da lição: “Amar é mudar a alma de lugar”.
Onde está a alma dos pais que abandonam seus filhos? Não só o abandono físico, que impede o contato visual, mas o abandono da responsabilidade, que impede o exercício do amor. Sim, porque diferente das paixões avassaladoras, o amor aos filhos se constrói dia-a-dia: a cada colher de comida levada à boca, a cada fralda trocada, a cada escovação dos dentes, a cada história contada e cantada. E quando crescem um pouco mais: a cada festa junina da escola, a cada desenho animado assistido milhões de vezes, a cada tombo de bicicleta, a cada bronca...
Tenho acompanhado algumas histórias de abandono aos filhos, relatadas pelas minhas alunas-professoras, e sinto-me incapaz de compreendê-las. Não por julgamento do que é certo ou errado. Até porque na relação pai e filho os valores são subjetivos, transubjetivos: não há padrões estabelecidos. Há sim aquilo que fazemos ou deixamos de fazer. E, portanto, aquilo que aprendemos ou não. Mas pela constatação de que o abandono aos filhos interrompe o ciclo da roda-viva, em que o exercício do amor define a lição maior: os filhos roubam-nos a alma... E nos devolvem quando são pais.
*Mércia Falcini é educadora em tempo integral. Casada com Felipe e mãe do Gabriel e da Camila tem dedicado toda sua energia profissional em projetos de consultoria e assessoria pela empresa Saberes. É membro fundadora da Academia Saltense de Letras, Coordenadora Pedagógica do Colégio Terras em Itu e Colunista do Jornal Voz da Cidade e do Site Itú.com onde publica suas crônicas semanalmente.
www.encontrodepoetasemsalto.com
(Mércia Falcini)
São muitas as dores do mundo... Ah, se elas fossem mensuráveis, haveria dor maior do que a dor de perder alguém amado? Mas, elas são tantas e todas rasgam minha alma:
fome,
miséria,
egoísmo,
inveja,
exclusão social,
racismo,
saudade,
terrorismo,
morte.
Dor tem de transformar: da saudade surgir o reencontro. Do cansaço, o descanso. Da fome, o alimento. Da doença, a cura. E da morte? Qual é a transformação da morte? Morte e vida conservam o mesmo mistério: para aonde vamos? Quem somos? Por que somos?
Sem respostas e convencida de que a morte é o destino da vida, precisando apenas encontrar um argumento, lembro Gilberto Gil, que canta: “(...) Tem que morrer pra germinar, plantar n’algum lugar, ressuscitar no chão”. E canta também a vida, embora nem sempre afine o tom, para embalar as dores do mundo e da alma de quem chora a saudade da partida.
Afinal, para isso existe um Deus: explicar o inexplicável, atingir o inatingível, compreender o incompreensível. E nos carregar no colo quando a dor parece insuportável.
Por que lembrar Rachel?
(Mércia Falcini)
Ela não queria escrever sua autobiografia, mas, seduzida pela afetividade da irmã, quase filha, de certo alma gêmea, escreveu sua história de forma encantadora... Tantos anos esteve comigo durante os últimos meses e como um milagre ou coincidência, como prefiram, no dia em que fechei a última página do livro, a autora fechou os olhos para a vida.
Rachel de Queiroz morreu silenciosamente, feito a revolução que travou na literatura brasileira. Ela, a primeira mulher a conquistar a imortalidade na Academia Brasileira de Letras, escreveu a história do nosso país. E abriu caminhos: com fibra, coragem, e determinação - talvez, como ela própria tenha dito, características não suas, mas inerentes à juventude – enfrentou políticos, sistemas e cartéis. Sempre em nome da ética e da cidadania. E não foi em vão, sua obra revela a legitimidade da consciência política, cultural e intelectual com que se dedicou ao mundo das letras. Assim é seu livro de memórias: mais do que sua história, Tantos anos conta a história do nosso Brasil e da nossa gente. Uma interpretação genuína do sertão seco do Ceará, num jeito leve e sedutor de invadir lembranças, suscitar sentimentos e marcar história.
Preocupada com o papel da mulher na sociedade moderna, Rachel rasgou preconceitos e cavou seu espaço (...) e de todas as que vieram depois dela. Hoje, quando gozamos dos diretos adquiridos, profissional ou maternalmente, bem pouco nos lembramos do caminho trilhado: uma longa história escrita, a punho, por bravas mulheres.
Mas, o motivo gerador destas poucas palavras não se encontra na tentativa estúpida de mais uma homenagem pós-morte - gesto hipócrita de lavar a consciência e pedir desculpas pelas faltas em vida – e sim, no intenso significado da sua obra, que conserva o poder histórico nas palavras escritas, que eterniza a possibilidade do aprender sempre. E que conforta a alma dos brasileiros que choram o descaso cultural do seu país.
Um país que não aprendeu a valorizar seus escritores e intelectuais e que, por isso, não registra nas memórias do seu povo a lembrança de ter lido seus livros nos bancos escolares. Desde muito tempo, os livros didáticos trazem os resumos das obras dos nossos escritores, como se isso bastasse. São poucas as escolas que possibilitam o contato com a obra: os resumos são mais rápidos e fáceis. O trabalho diminui e o aprendizado também.
Afinal, num país com pressa, de ações imediatistas, por que perder tempo com leituras? Por que lembrar Rachel, Drummond ou Machado de Assis?
Amor incondicional
(Mércia Falcini)
Há algum tempo venho pensando no sentimento que envolve a relação entre pais e filhos. Confesso que só o compreendi quando experimentei: o amor incondicional. E por vivê-lo intensamente é que as notícias trágicas de violência física ou emocional entre pais e filhos tanto incomoda... E assusta. Basta acompanhar atentamente os relatos dos pais que mataram seus próprios filhos, num gesto de desespero extremo, quando já não mais podiam conter os comportamentos dos filhos viciados em cocaína.
Acontece que amor de pai e de mãe não é assim tão fácil e maravilhoso como versam os grandes poetas ou como retratam os grandes artistas.
Amar o filho é um longo exercício de desapego de si próprio, de reflexões contínuas, de remorsos e arrependimentos, de certezas e dúvidas. É a busca incessante da atitude certa, de leituras que orientem, de horas gastas na terapia.
Amar o filho é deixar de fumar, de beber e vigiar pelo resto da vida os próprios atos para que o conselho e o sermão tenham coerência. É manter sintonia entre o gesto e o discurso. E ainda assim corremos riscos. Por mais que amemos, jamais saberemos se o que fizemos é suficiente para o desenvolvimento feliz e salutar dos filhos.
Mas o amor de pai e mãe é incondicional e o resultado não importa. Aliás, bem pouco nele pensamos quando acordamos na madrugada fria para verificar se estão cobertos, quando deixamos de assistir ao programa favorito da TV para ajudá-los na tarefa escolar ou quando desistimos de comprar a roupa nova para garantir o brinquedo do Natal.
A roda-viva, que ora nos faz filhos e ora nos faz pai ou mãe, ensina no tempo certo a lição desse amor e com ele nos permite a compreensão da sua imensurabilidade. Mário Quintana, nosso sensível poeta e escritor gaúcho, quando em sua poesia conceituou o amor, certamente experimentava da lição: “Amar é mudar a alma de lugar”.
Onde está a alma dos pais que abandonam seus filhos? Não só o abandono físico, que impede o contato visual, mas o abandono da responsabilidade, que impede o exercício do amor. Sim, porque diferente das paixões avassaladoras, o amor aos filhos se constrói dia-a-dia: a cada colher de comida levada à boca, a cada fralda trocada, a cada escovação dos dentes, a cada história contada e cantada. E quando crescem um pouco mais: a cada festa junina da escola, a cada desenho animado assistido milhões de vezes, a cada tombo de bicicleta, a cada bronca...
Tenho acompanhado algumas histórias de abandono aos filhos, relatadas pelas minhas alunas-professoras, e sinto-me incapaz de compreendê-las. Não por julgamento do que é certo ou errado. Até porque na relação pai e filho os valores são subjetivos, transubjetivos: não há padrões estabelecidos. Há sim aquilo que fazemos ou deixamos de fazer. E, portanto, aquilo que aprendemos ou não. Mas pela constatação de que o abandono aos filhos interrompe o ciclo da roda-viva, em que o exercício do amor define a lição maior: os filhos roubam-nos a alma... E nos devolvem quando são pais.
*Mércia Falcini é educadora em tempo integral. Casada com Felipe e mãe do Gabriel e da Camila tem dedicado toda sua energia profissional em projetos de consultoria e assessoria pela empresa Saberes. É membro fundadora da Academia Saltense de Letras, Coordenadora Pedagógica do Colégio Terras em Itu e Colunista do Jornal Voz da Cidade e do Site Itú.com onde publica suas crônicas semanalmente.
www.encontrodepoetasemsalto.com