O Inferno de Dante.
I
Dois poetas e o destino.
Círculos eram nove, vales três;
Um poeta conduz ao mundo turvo
Revelando pecados tão obscuros,
Um portal, quatro esferas, fossos dez.
Círculos concêntricos, fundos,
Habitados por entes condenados
Por um juiz corrompido pelo bem
Cobra revés do além, de tão profundo
A dor mostra no ódio rebelado
Pecado venial já cumpre pena
Que de volta em revolta, vê-se tudo,
Até quando o calor for congelado;
Ignora quando a fé se despe plena,
A pele veste a dor como um veludo!
II
A justiça do Inferno
Os círculos de culpa menos grave
Que purgam penas turvas e culposas
Recebem noutras penas dolorosas
O abrigo do castigo que lhe trave
O pecado medido pelo dolo
No desejo do mal é consumado
O devoto sem paz será cremado
E o desejo feroz devora o tolo
No centro dos Infernos sem irmão
Soterrado no gelo, pousa a mão
Uma voz no suplício ficou muda;
Suas dores serão surdas, ainda assim,
Quem matou o teu pai, adora Judas
Pois ama teu irmão como um Caim.
III
A Selva e o Monte.
A selva é labirinto, descaminho;
Quer pureza e razão, anjos no fim,
Pois toda selva traz no fogo um ninho
Quando a chama já cercou o Serafim...
Quem fustiga a pantera quer sevícia
A fome do leão quer violência,
Porém na traição há tal malícia
Que a sordidez da loba tem presença
Homem arrebatado fez-se errante
O jovem devorado pelas fomes
O velho consumido cede ao vício.
Quando a voz de Virgílio chama Dante
- Este ouve Beatriz e se consome -
A prisão da jornada tem início.
IV
O Portal do Inferno.
“Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”
Divina Comédia - Dante.
O Portal da esperança abandonada
Acolhida dos seres mais impuros
Um tempo congelado no obscuro
O lugar onde a dor já fez morada
A ruína guarda almas condenadas
Na tortura crescente dos murmúrios
De um grito culpado e sem futuro
Que estanca na garganta lacerada
“Deixai toda esperança,” sejas forte;
Pois estais onde a morte dói tão mansa
Que todo desespero é sem remédio.
“Ó vós que entrais!” aceita em paz a sorte!
A dor jaz na recusa da esperança
Que te alcança na dança dos assédios.
V
Vestíbulo dos Indecisos.
Aqueles que relutam divergindo
Buscando do silencio, fortaleza;
Dois rumos conduzem a incerteza
Perdidos na tragédia divididos.
Confusos retardaram a atitude,
Pois perseguem em fila uma bandeira
Fugindo das escolhas derradeiras
Condenados sem vício e sem virtude.
Ignorados da barca de Caronte
Não cruzarão as águas do Aqueronte
Rejeitados do céu como covardes.
Vítimas da escolha e sem sentido
Trocaram o bem por mal, hoje caídos,
Não saberão por quem o Inferno arde.
VI
Limbo – Primeiro Círculo.
Quando o homem virtuoso do passado
Que chegou de outro mundo sem ter visto
A chaga consagrada que há em Cristo,
E mesmo pio não foi sacramentado.
O Castelo da Ciência molda mundos
Na coragem heróica destas crenças
Sai da voz dos poetas, tão intensas,
Que retumba do Limbo mais profundo.
Guarda a alma de Adão, consola Abel,
Lava as marcas de Heitor, vela Raquel,
Chamados pelo Pai por seu Juízo,
Suspensos entre o céu, sem suas glórias;
Sem o mundo dos mortos a vitória
Da fé revela ao justo o Paraíso.
VII
Os luxuriosos – Segundo Círculo.
Se Minos torce a cauda na sentença
As voltas contam todas as verdades
Um tribunal, um juiz, a santidade
Gozando os dissabores nas ofensas.
Perdidos na paixão com toda fúria,
Por viver as tragédias, tal Helena;
Sacrifício de amor revela à pena
Na prisão dos escravos da luxúria.
A paixão que arruína engana um tolo
Arrastando Francesca com Paolo,
O vento das tormentas não descansa;
Naqueles sufocados pelos beijos
Seguirão condenados aos desejos
Que o Inferno sopra o vento da vingança!
VIII
O Domínio de Cérbero – Terceiro Círculo.
Deformado no vício, na fartura;
Cevado na abundancia, nos excessos;
Escravo dos sentidos perde o nexo,
Um fraco cujo mal dispensa a cura.
Quando o cão estraçalha os condenados
E na lama conhecem seus martírios:
Tormentas rigorosas, calafrios,
Na sentença que cumprem isolados
Três cabeças famintas duma fera
Fartando-se na dor que é sem limites
Aqueles que perderam no apetite
Cedendo a perversão de tal Quimera;
A gula como a fé, tão corrompida;
E a fome cobra os preços noutras vidas.
IX
Pródigos e Avarentos – Quarto Círculo.
Os seres corrompidos por tesouros
Perderam-se nas rodas da fortuna
Servindo-se da usura oportuna,
Cederam seus ouvidos aos agouros
Tomaram vãos conselhos da ganância
E deles destacaram: avareza;
Seguiram siderados na riqueza
Sedentos afogaram na abundância
Arrastam os pecados da existência
Confrontando suas forças no martírio
Nos dois mundos opostos da prudência
Atentos e, por fim, ouvem avisos
Do tempo consumado em seu exílio
Quando o mal afinal cumpre o juízo.
X
Estige – Quinto Círculo.
Um rio sangra fervente no pavor
Pedras quentes da pira vão ao fundo
A ira em penitentes deste mundo
Vermes presos no lodo do rancor
Na cabeça a sentença de um pecado
No lago a nau do Inferno não transige,
Pois Flégias guarda as juras sãs no Estige
Navega com os Deuses do outro lado
A ira ganha a boca dos escravos
E descansa abraçada no rancor
Sua força domina todo parvo;
Quando o peito doído aceita a tranca
Na clausura contida em toda dor
E sangra, que a ferida purga franca.
XI
A Cidade de Dite – Sexto Círculo.
A vontade se mostra incontinente
Assalta a consciência dos culpados;
O mal precisamente consumado
Recebe tais castigos, inclementes.
Mil anjos desgraçados nestas portas
As torres são guardadas pelas Fúrias
Nas covas mil hereges, mil lamúrias,
Queimando na fornalha a carne morta.
Sustenta na sentença, o Santo Ofício;
O fogo que se espalha em precipícios
No calor dos perdidos por seus atos.
Um Papa cujo nome é Anastácio
Paga seus impagáveis desacatos
Queimando com hereges de Palácios!
XII
Vale do Rio Flegetonte – Sétimo Círculo.
O Flegetonte ferve nos violentos
Os tormentos seguiram Minotauro
A dor que sai das flechas dos Centauros
Encontram nestas almas tais alentos;
Tiranos queimam culpas pelas faltas;
Assaltantes recebem trato justo
Os homicidas cobrem todo custo
Quando o mal reconhece nesta malta.
O rio ferve sem dó das condenadas
Que purgam suas penas tais, infindas;
Mas toda eternidade soma nada.
Quando a alma quer paz, na dor bem vinda,
O Inferno quer horror, e a paz conflita,
Quando o sangue recusa a mão maldita.
XIII
Vale da Floresta – Sétimo Círculo.
Nas sombras da floresta condenada
As sementes da dor, em si contidas,
Geram arvores frágeis deprimidas,
E as Harpias devoram tais galhadas.
O vento traz gemidos tenebrosos
Cadelas dilaceram perdulários,
Dentre espinhos hostis e riscos vários,
Guarda a pele perfumes venenosos.
Os seres que cegaram conseqüências
E buscaram nos gestos vãs desculpas
Mas seguem atados, guardam culpas,
Purgando-se na própria violência
Tramando e dando a luta por perdida
Viveram vendo a vida sem saída.
XIV
Vale do Deserto – Sétimo Círculo.
Lupanar dos violentos condenados
Um deserto de fogo queima os tolos
A alma roga a paz e quer consolo
Nas dores que submetem os rebelados
Conflitos das palavras nos proscritos,
Daquele que negou tal Natureza
Agora só recebe a chama acesa
Imolado na usura acusa o grito
O ar pesa que sufoca, faz-se chamas
Falso sábio implora pelos Céus
Que derramam mais calor no incréu,
Pois na hora da verdade sente o drama,
Entende no rigor do seu martírio
Que a dor procura par no livre arbítrio.
XV
Cachoeira de Sangue do Rio Flegetonte - Sétimo Círculo.
A nascente sem paz do Flegetonte
Que sangra em suas pedras escaldantes
Caminhando por dores torturantes
Onde o mal se revolve – Eis a fonte!
Buscando alguma paz nesta viagem,
Uma trilha segura, alguma ponte
Cruzando sobre o mal, embora conte
O poeta tem par nesta passagem
A podridão da carne é tal, sufoca,
Tirano serve a culpa nos seus atos,
Suicida sente a dor que a dor provoca.
Pois onde nasce o mal há tal fascínio
Que oDemônio é o juiz dos insensatos
Recolhe a justa paga do domínio.
XVI
Primeiro Fosso – Rufiões e Sedutores – Oitavo Círculo.
São fraudes como Mestres do Desejo
Servindo toda sorte de apetites
Compraram e venderam sem limites
O gozo, contratando falsos beijos.
A palavra nascida do espanto
A paixão escraviza mais amante
Seduzidos, ao fim, são dois farsantes
Simulando a pureza dos encantos.
Jasão sente na morte dos seus filhos
Que a dor quer o prazer como sevícia
Na delícia das lágrimas sem brilhos;
O tempo eterno pesa nos açoites
No arrepio toda pele quer carícias
Na volúpia o Demônio fez a Noite.
XVII
Segundo Fosso – Aduladores e Lisonjeiros – Oitavo Círculo.
Aduladores pagam penas justas
Enganaram em fraudes, tantas farsas;
Converteram-se justos noutras graças
Corromperam os retos de conduta.
Um fosso tal, profundo em imundícies
E como sujas foram suas vidas;
A podridão revela-se sentida,
O cheiro ruim ascende à superfície
Inunda o mundo morto destas almas
Quem cultivou sonhos sofre desperto;
Colhe na vastidão mais de um deserto
A flor e a dor sentidas nestes traumas
Desesperadamente pedem calma;
Ora e chora sem ter anjos por perto.
XVIII
Terceiro Fosso – Os Simoníacos – Oitavo Círculo.
A pena do mercado de indulgências
Tão dura, quanto justa, que pareça
Queima o herege e padre que o mereça
Batizados na dor das penitências.
Mentindo vendem fé, ponta cabeça,
O juízo vem preciso na sentença
Quando o fogo é a cura e mais doença
O pecado reveste-se às avessas.
Quando benzem vinhos em tais vinagres,
Pois cobram cada gota, em cada drama,
Dos tementes na Tenda dos Milagres
Na soma dos pecados vis, fraternos,
O fogo eternamente cobriu Roma
Quando o Pontificado foi pro Inferno.
XIX
Quarto Fosso – Os Adivinhos – Oitavo Círculo.
Promessas reveladas de futuro
Uma luz brilha fosca no caminho
E lendo sortes toscas, o adivinho
Encena mortes põe preços no escuro.
Um profeta corrupto lê nos muros
A prisão tranca medos vãos, daninhos,
Mas a chave dourada dos mesquinhos
Abre a porta da ilusão no imaturo.
Porém o juízo ajusta no contrato
E cobra um custo justo em cada ato
Quando a luz fez no tolo a sua aposta.
A sentença colocou a luz nas costas
O futuro que já foi uma passagem
É a rota da derrota da miragem.
XX
Quinto Fosso – Os Corruptos – Oitavo Círculo.
Doze Demônios guardam os perdidos
Que ruíram no rumo da ganância
Malacoda mantém a liderança
No castigo dos entes corrompidos.
Sufocados, submersos, submetidos;
- Sejam escaldados: cobra a Confiança;
Torturados, as flechas lhes alcançam
E os algozes recolhem seus gemidos.
A paga sem clemência dos pecados
Deu causa a servidão dos submissos
O juízo sucede revelado;
Cumprido no castigo celebrado
O contrato sustenta os compromissos
Na razão dos valores ofertados.
XXI
Sexto Fosso – Os hipócritas – Oitavo Círculo.
Perderam-se nos atos, falsos brilhos;
E desprezaram suas conseqüências
Sustentaram em turvas consciências
O fusco e o mal; o vil tornou-se o trilho.
Porém tais culpas já pesaram tanto
Que cobrando do verbo e do gesto
Um chumbo tal pesando sobre os restos
Na ilusão dos incautos pousa o manto.
Seduzidos por falsas identidades
Pagam tributos a outras divindades
Quando a dor se conforta nas ofensas
Silencio recortado pelo grito
Foi gravando-se grave no conflito
Os ídolos sem causas cobram crenças.
XXII
Sétimo Fosso – Os Ladrões – Oitavo Círculo.
Picados por lagartos e serpentes
Que lhes roubam o corpo e as feições
Cobrando à decadência das ações
Na mutação que dói nos penitentes.
São donos dos pedaços destes corpos
Mutilados, despojos e destroços.
A angústia trai a carne, ganha os ossos
E a dor que jaz no fundo alcança o topo
Os ladrões como os nobres de Florença
Saqueavam os tesouros por costume
Abusando sem dó da fé alheia
Cobra o dobro na causa da doença
Incurável desdita que procure
A virtude sucumbe e cai na teia.
XXIII
Oitavo Fosso – Os Maus Conselheiros – Oitavo Círculo.
A boca aguça a fala e veste o fogo,
O fogo lavra a fraude num conselho,
O rosto encobre as chamas nos espelhos,
A voz do conselheiro joga o jogo.
O pecado cometido nos segredos
Violenta na figura quando escuta,
A chama se refaz embora oculta,
Mas inflama na culpa e colhe o medo.
A língua sente a dor cruel que teima,
A fibra sofre a míngua quando queima
Sentindo-se encantado, o verbo pleno,
Que transforma as palavras em sentença
Quando o fogo se apura, e cura a doença
O bálsamo que exala é qual veneno.
XXIV
Nono Fosso – Os Semeadores de Discórdias – Oitavo Círculo.
Lavraram nas sementes da discórdia
O rigor que sustenta tais conflitos
Pastaram sobre a paz do mundo aflito
No grito buscam vã misericórdia.
Quem cumpre sem temor estas façanhas
Sente a fúria do mal que molda o mundo
Guarda a carne o desprezo mais profundo
Quando o aço flutua nas entranhas.
Mutilando na força das injúrias,
Quando cobra castigos horrorosos
Os demônios, carrascos valorosos,
Recolhem das discórdias, as lamúrias;
Abrigando na carne lacerada
A justiça que há no aço da espada.
XXV
Décimo Fosso – Os Falsificadores – Oitavo Círculo.
A pele apodrecida cobra as faltas
Daqueles que viveram na mentira
Queimaram a verdade noutra pira
A lira soa falsa nesta pauta.
A sarna come o couro desta malta
Dissimulada colhe a flor da ira
Quando a dor que maltrata não expira
E a prudência iludida fez-se incauta.
Alquimistas recebem da imagem
Pintada na ganância do delírio
A paga mascarada no martírio.
Devaneios contidos na miragem
A mentira de ofício não descansa
Na ilusão corrompida da esperança.
XXVI
Cócito – Nono Círculo - Quatro Esferas.
O círculo gelado dos invernos
A lágrima onde sangra o desespero
Neste rio condenado por inteiro
Que encarcera traidores tais, eternos.
A traição suja a mão do fratricida
A inveja causa a pena do maldito
Quando a sentença plena do delito
São martírios eternos noutra vida.
Houve quem renegasse na família
O divino contido em todo ser,
Pois seu beijo já selou a armadilha.
O traidor sofre e cobra menosprezo
Morando nesta dor sem perecer
Colhe agora na dor o sal desprezo.
XXVII
Caína – Nono Círculo - Primeira Esfera.
A mão contaminada por cobiça
A culpa revelada pelo gesto
Que desmonta na dor brutal protesto
Nas carnes congeladas da carniça.
A inveja roga preces noutra missa
A sentença anunciada em tom funesto
Na culpa do pecado manifesto
O Inferno guarda a paz e faz justiça.
O peito soterrado pelo medo
O enredo confirmado noutra vida
O traidor tem a mão dos homicidas
Que a culpa não se purga no degredo
Vivendo o pesadelo espera o fim,
Quando o gelo do Inferno quer Caim.
XXVIII
Antenora – Nono Círculo - Segunda Esfera.
Traidores da nação pagam as culpas
Soterrados no gelo, os condenados,
Consomem-se por atos perpetrados
Cujo dolo o Demônio não desculpa.
A terra foi vendida e cobra penas
Quer a dor consumada como abrigo
No suplício implacável do castigo
Que toda alma comporta pura e plena.
O traidor conjurado se retrata
Acrescenta aos ganhos as conseqüências
A ganância misturada na eloqüência
Um discurso sem causa contra a pátria;
Pelas mãos traiçoeiras de um escravo
Os irmãos imolados morrem bravos.
XXIX
Ptoloméia – Nono Círculo - Terceira Esfera.
A lágrima gelada do castigo
Acusa e rouba a paz do hospedeiro
Abrigados por falsos companheiros
Resguardam o engano dos abrigos.
O parceiro guardado no perigo
Acolhido no escudo traiçoeiro
Abraça o aturdido passageiro
Enquanto o pai da dor se diz amigo.
O tormento se cumpre sem descanso
O frio recobre o fundo deste mundo
Mesmo no desespero sem remanso
E trazendo na dor do frio intenso
A culpa se refaz no vão profundo
Pois no vasto do Inferno vive o senso.
XXX
Judeca – Nono Círculo - Quarta Esfera.
A culpa de um pecado sem igual
Um beijo consumado contra a luz
Da prata da moeda que seduz
O domínio traiçoeiro do ancestral.
Pois o anjo da discórdia serve o sal
Numa reza que despreza e que traduz
A humanidade está presa na cruz
E o juízo recebido cobra o mal.
A dor que vem do beijo do carrasco
Dói mais funda no gesto de um irmão
O remorso aprofunda no penhasco
Quando a repulsa do ato dói num misto
A dor fere mais funda no perdão
Quando Judas recebe a dor de Cristo.