Catadores de esperança

Alimento-me das sobras

Durmo, sempre, ao relento

Quando Deus fez sua obra

Relegou-me ao esquecimento

Hoje vejo a menina linda

Catando restos, é horrível

Imaginar sua pobre vida

Sempre tão dura, é sofrível

Olho para todos os lados

Logo vejo outras crianças iguais

Todas gentis correndo a brincar

Parece que a menina não é sem par

Olho novamente para ela

Sinto que parece mais uma fera

Que morre por um pedaço de pão

Duro, carcomido, roído pelos insetos

Mas por certo é por causa dele que vive

Ela me olha e imediatamente vislumbro

Entre esse mundo de horrores

Um outro mundo cheio de dores

Um mundo coberto de rancores

Guardados em um corpinho tão magro

Que parece prestes a desmoronar

Olhando bem no fundo percebe-se

Lá existe, certamente, uma alma meiga

Por trás daqueles olhos lacrimejantes

Por muitas e muitas vezes tão tristes

Em outras, até podem parecer brilhantes

A mágoa dela é diversa da que sinto

Essa é da impotência de apenas olhar

E nada, concretamente, ter a coragem de fazer

A concretude para ela é matar a fome

Ânsia essa que dia a dia a consome

A da menina reflete o desejo de dignidade

Do desespero por, quem sabe, ser alguém

Ser considerada humana, ter de tudo, ser gente

Não esta gente doente que nem a vê

Nem a outra, aquela do carro importado

Que para no sinal e sequer dá uma moeda

A da mansão no lago, que a olha com desprezo

A que passeia altiva no shopping, e desvia dela

Não essa gente, que finge que ela não existe

Que sequer admite que ela incomode

Essa é a pior, é o que há de mais triste

Fingindo que a menina proscrita é lenda

Sabe que a está condenando a permanecer sempre assim

Suja, faminta, catando restos e morando em lugar algum

A está condenando a ser nada

Tal como eu que nada faço

A menina imunda da lixeira,

Essa, que observa a tudo sem reclamar

Está sempre ali, mesmo que ninguém a veja

O que nela renasce diariamente é a esperança

De ser para sempre apenas uma criança

Pois crescer e permanecer assim, é só tristeza

A menina continuou, me olhando e catando

Catando e guardando, é essa a sua única obsessão

E eu ali parado, apertando o coração

No peito sufocando um soluço teimoso

Já saltando para fora quase na minha mão

Meu Deus por que a criança precisa estar assim

Por que somente esse ser pequeno e inocente

É que paga todas as penas desta sociedade doente

Não obtenho resposta, mas a menina continua ali

Catando, escolhendo e, pior ainda, comendo

Do lixo fétido desta sociedade apodrecida

Sociedade que é pior que a podridão que produz

Sociedade mórbida que há muito perdeu a luz

Que só o que faz proliferar é isto,

Mais e mais lixo e junto dele os miseráveis,

O resto, pode até parecer bobagem,

Mas a sua podridão é somente o que a conduz

Pois nela só se gera seres nefandos e corruptos

Esses são os que abundam e se tornam fecundos

A criança que cata para comer, essa não é problema

A sina que ela carrega sequer pode ser chamada de vida

Mas sim, é uma luta constante para sobreviver

De resto, é somente esperar que se finde e pare de sofrer.

Brasília – DF, 28 de julho de 2009.