Amiga
Amiga, saiba que não sou triste
Eu não quero falar do mundo
Se alguém quiser saber dele
Acho que pode ler nos jornais
São milhares de tipos
Tipos de todos os tipos
Tipos violentos, estupradores
Tipos corruptos, doutores
Também não quero falar de miséria
Se alguém quiser saber dela
Que saia às ruas e olhe ao redor
Ela está em todas as esquinas
É só parar e ver os sinais
Calar para ouvir os ais
A voz das crianças sem teto
A voz do mendigo sem dignidade
A voz do trabalhador sem emprego
As vozes de todos, vozes do medo
É, minha amiga, a miséria
Está em toda parte e é dorida
É horrível a da exploração
Essa que vem da sede da abstração
Mas não é dela que quero falar
Tampouco da violência que não choca
Pois essa que vemos todos os dias
Já há tanto tempo que nem nos toca
Eu quero falar, minha amiga
Das coisas belas que nos oferece a vida
De todas as crianças sorrindo e brincando
De todas as mesas constantemente fartas
De todos os homens dignos e altivos
De todos os doentes sendo tratados
É disso, amiga que eu quero falar
Mas me diga, onde isso tudo está?
Por que eu não vejo um mundo assim?
Será que toda essa tristeza está em mim?
Eu quero muito falar de alegria e beleza
Da natureza, agora, sendo preservada
Mas o que vejo, minha querida irmã
Ela cada dia mais e mais devastada
A violência em dimensões incontroláveis
A miséria refletida no olhar do inocente
Junto com ela vejo a fome e a desilusão
O que vejo, minha irmã, é um mundo doente
Mas não é disso que quero falar
Na verdade, já nem o quero mais
Agora só gostaria mesmo de saber
Por que tenho que me calar?
Por que não posso falar de paz?
Por que não posso?
Por que não me é permitido?
Contar sobre um sonho colorido
Narrar sobre uma bela utopia
De ver beleza em tudo, ver harmonia
Ver os homens felizes e unidos
Construindo o mundo que anseio
Esse do qual quero muito falar
Mas tenho sempre que olhar e calar
Não quero contar do meu desânimo
Não quero falar da minha desilusão
Não quero mais falar da minha própria miséria
Para que dizer que meu interior foi devastado
Dizer que dentro de mim deu-se terrível procela
Para que, se não posso falar do que quero
Por que só vejo tristeza, dor e desânimo?
Será que é só isso que trago em mim?
Mas se eu quero ver beleza em tudo
Até me esforcei para que fosse assim
mas não consegui ver nada dessa forma
por isso não quero falar, mas posso
só se não fosse assim me calaria
Não por não querer falar e sim não poder
É isso que faz com que eu não possa falar
A inominável e imponderável sede de poder
que me cerca como se eu fosse uma ilha
Essa sede, essa ganância do homem
Torna inenarrável tudo aquilo que vejo
Por isso não posso falar o que almejo
Pois só vejo dor, miséria e aflição
Será que o culpado sou eu, por parecer triste?
Será que somos todos nós, pelo que nos cerca?
Amiga, sei que tu, de alguma forma, estás certa
Mas não estou assim como pensas
Não estou à beira da demência
É que percebi, o que quero falar não existe
Por isso, não sou, mas estou a cada dia mais triste.
Brasília – DF, 04 de junho de 2009.
(Com a colaboração de Nadja Cezar)