A VOZ DA RUA
Tinha nome de santa, aquela rua,
e desvendou-me os seus segredos, um por um.
A sua voz vinha do calor suave daqueles degraus de pedra
onde me sentei agradado pela sombra e pela paz.
Vinha no convite das arestas arredondadas por tantos passos,
desses degraus puídos por anos de vassouradas ferozes
em limpezas inegociáveis .
Vinha das janelas abertas, em todas as casas,
como se fossem olhos por sobre uma porta-nariz,
apreciando-me enquanto me olhavam benevolentemente.
Vinha até das cores, por todos os lados,
tão ricas e intensas que se misturavam numa única cor,
como se fosse uma voz, para os meu olhos reverentes
que a escutavam como a uma sublime oração
a um deus ainda mais sublime.
Ou como a um poema recitando-se a si mesmo,
em lentidões de prazer saboreado.
Vinha de todo o lado, e era a voz da rua...
Escutei-a enquanto me contava detalhes
com essa tranqüilidade emocionante, plena de dignidade,
feita de rugas de pedra que lhe compunham uma face serena,
de quem não tem mais nada a ganhar ou a perder,
e por isso apenas está e, por estar, apenas é...
Falou-me dos seus filhos queridos, brincando,
e das casinhas de bonecas, onde logo depois foram pais,
numa velocidade que nenhuma rua, assim pacata, compreende
ou é capaz de acompanhar.
( Talvez por isso, meu Deus, talvez por isso,
tantos passos se perderam, descendo rumo ao cais e ao mar,
onde o espaço gritava mais espaço
e as ondas não eram apenas ondas,
mas uma promessa imensa de liberdade maior,
em que o pão se sonhava, talvez, como num sonho mais farto,
sem sombras que impedissem os risos efervescentes
de salpicarem, como beijos alegres, a pureza solarenga das manhãs.
Era a voz da rua, contínua, fluente, que eu escutava...
Contou-me segredos de movimentos furtivos e de amores,
de corpos frementes procurando-se na escuridão da noite
tão sabiamente mal iluminada, tão cúmplice,
e explicou-me as canções tristes do vinho nas tabernas
onde tantos gastaram o tostão que não tinham,
correndo atrás do sonho impossível de serem o que não eram,
ou afogando mágoas onde não havia regresso, nem piedade.
Era a voz da rua, que eu escutava assim, embevecido,
como nunca escutara antes, de forma tão perfeita...
E quando ela me falou, naquela sua linguagem clara, de rua antiga,
de olhos úmidos chorando nefastos amores e perdidas esperanças,
ou então de morte, e de má sorte; de gente perdida em ponta de faca;
no jogo infeliz de algum carteado, em escondidos de porão;
ou num fado denso, com lágrimas de sofrimento e solidão...
Quando ela assim me falou, dizia, eu não suportei mais, e fugi.
Fugi covardemente, para não escutar mais nada,
para que não pudesse nunca ver desmentidas na minha memória,
por outras palavras dessa minha mesma rua,
a felicidade e a beleza dos momentos que eu já sabia.
Fugi para que ficassem fora de mim, sem os escutar,
os horrores e as histórias tristes que toda a rua também tem,
e prevalecessem as imagens dos beijos e dos gestos de carícias
escondidos pela sombra imprecisa das esquinas,
e os sons de violas e guitarras doces acompanhando vozes que,
em algum dia daquela rua,
se alçaram às estrelas e lhes acrescentaram brilhos,
enigmáticos como sorrisos,
e deixaram para todo o sempre, atrás de si,
apenas ecos e saudades,
que hoje eu canto...
Agosto de 2009