TERRAÇO
 
Vida, sonho que nos acontece
Mesmo quando acordados,
Com que isenção contemplo
O seu fluir. As horas, não raro,
Vêm encontrar-me inerte,
Assistindo à cena, na cadeira do terraço.
O reflexo das pessoas na rua além
Ilumina o profundo descaso
Com que trato tudo o que faço;
O sol agride-me com a paisagem
De coisas que permiti alheias.
 
Eu olho todos os passantes
Por mim, insigne ficante
Atrelado ao meu destino
De ser contemplativo no universo:
Cada um traz no rosto a marca
De uma história por contar aos netos,
Seja de conquista, de chuva apanhada,
De porre violento, de briga ou de traição,
E, talvez até o contem, de fracasso,
Mas vivida real, lá na rua,
Como tudo de fato deve ser,
E não como se imagina de um terraço.
 
Essência sublime das coisas
Deixadas em vão,
Ocorre-me a noção sutil
De uma nova maneira de vivê-las.
Suje-me o pó da rua que espanei
E uma chuva absolutamente vertical
Lave-me a cabeça de tantos pudores
Frescos e sombrios de terraço.
                                                       23.04.79