MUSA CINZENTA

Todos os dias me sentava junto ao cais da tua boca

a ver-te voltear o sentimento.

Barcos irados

despenhavam-se no crude

com que navegavas as horas.

Marés calcinadas

reanimavam fantasmas

no tempo apagado.

E eu, ali,

debruçado sobre a orgia temperamental

contorcia-me na apoteose fumegante do fel.

Todos os dias subia trevas embriagadas

fulminado de abismos azuis

e no ingénuo paraíso

bebia relâmpagos de ilusão.

Electrocutado no hálito distante,

carregava metáforas luminosas

pelas margens sanguíneas do fascínio.

Agora junto à tua boca deserta,

desço as madrugadas que latejam na alma

por um rio gelado aceso de lâminas.

Hoje morrerei como todos os dias,

nas infindáveis lágrimas crivadas de pólvora

que deflagram na geometria transtornada da ausência.

Poema do livro "O áspero hálito do amanhã"

Alberto Pereira
Enviado por Alberto Pereira em 22/07/2009
Código do texto: T1713865
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