MUSA CINZENTA
Todos os dias me sentava junto ao cais da tua boca
a ver-te voltear o sentimento.
Barcos irados
despenhavam-se no crude
com que navegavas as horas.
Marés calcinadas
reanimavam fantasmas
no tempo apagado.
E eu, ali,
debruçado sobre a orgia temperamental
contorcia-me na apoteose fumegante do fel.
Todos os dias subia trevas embriagadas
fulminado de abismos azuis
e no ingénuo paraíso
bebia relâmpagos de ilusão.
Electrocutado no hálito distante,
carregava metáforas luminosas
pelas margens sanguíneas do fascínio.
Agora junto à tua boca deserta,
desço as madrugadas que latejam na alma
por um rio gelado aceso de lâminas.
Hoje morrerei como todos os dias,
nas infindáveis lágrimas crivadas de pólvora
que deflagram na geometria transtornada da ausência.
Poema do livro "O áspero hálito do amanhã"