Cemitério de cachorros
*Baseado no conto:
"O crime do professor de matemática"
(Clarice Lispector)
Quando o homem atingiu a colina
Viu de cima as pessoas, as meninas
Tetos irregulares, sino a badalar
E lá embaixo, transeuntes a pecar
Tirou os óculos, piscou os olhos
Olhou ao redor, saco no chão
Dentro dele
Um cadáver, um cão
Cachorro desconhecido
Começou a cavar
Animal desaparecido
Sob a terra estará
Mas, se fosse outro?
O verdadeiro cão
Enterrá-lo-ia na escuridão?
Quis olhá-lo melhor, gerou-lhe perturbação
Aqui jaz os cães
Pensou a olhar
Ao redor várias covas
Paisagem limiar
Sua idéia era enterrar
Necessidade criada, afã de cuidar
Cuidar de um cão morto
Pá na mão e um conforto
Aqui mesmo, pensou
E, num gesto grotesco, começou
Pá fincada o chão abriu
E com delicadeza o cão caiu
Pousou naquela cova
Viu terra na mão
Admirou com certo gosto
A sua perfeição
Começou a pensar
No verdadeiro cão
E com dificuldade não encontrou a razão
Deu-te então, o nome Abraão
No cemitério dos cachorros loucos
Esse homem trazia a dor
Passava noites em claro
E de dia professor
Em sua cidade triste
Ninguém o observava
Mas ele recolhia
Cada cão que encontrava
Cães famintos, quase mortos
Dava cabo, resignava
Sua missão
Os seres desintegrava
Era assim que o queria
Cobrir os cães com terra fria
O professor de matemática
Lecionava geometria
Naquele dia frio
Deu um suspiro fundo
Um sorriso amarelo
Um regozijo quase imundo
Passava discreto, sua sina
Inocente de libertação
Abatia cães como insetos
E no colégio outra missão
Lembro-me de ti quando era pequeno
Meu cachorro inquieto, sumindo era certo
Aquele homem cheirava as ruas
Num gesto repleto de agruras
Quem é o cão heróico
Quem sairá dessa punição?
Viver é uma alegria?
Para os cães uma missão
Eu via a angustia em seus olhos
Via a angústia de ser cão
Quem poderia abandonar-te?
Matar-te com um ferrão?