POR MELINDRE E POR CAPRICHO


Horas das minhas madrugadas...
Momentos de vazio
Em que amo estar como sonâmbula,
Olhos siderados,
Quase sem respirar,
O corpo mal se sentindo,
Frouxo, ausente,
A longa camisola arrastando-se pela casa,
Como se fossem asas de libélulas lilases,
Única manifestação de leve movimento
Nestas horas de torpor.

Quero escrever.
Quero escrever, malgrado o instante fluídico.
São os momentos do vazio,
De desejo não consumado,
De coito poético interrompido...
Virão?

Nenhuma palavra vem.
Não se dignam aparecer.
Recolheram-se encolhidas
Nos casulos de algodão e seda,
Dormem sob efeito de soníferos
E alcalóides de ópio...

Cansam-me durante o dia,
A toda hora em meus ouvidos,
Pisando minha mente,
Testando-me a memória.
Onde está caneta?
Estou sem papel.
Me deixem! Agora não posso anotar.
Mais tarde conversaremos, palavras!

O trânsito louco,
O relógio indicando o atraso,
O otorrino testando minha audição
(repita: pai, boi, céu, mão, fim, não...)
E descrevendo meu tinittus com som de chuva,
Hora crucial do diagnóstico,
Enquanto elas, as pueris palavras,
Dançam ciranda-cirandinha
Na minha cabeça atordoada,
Nas percepções desatentas,
Pedindo para serem arrebatadas...
"Criamos uma bela frase, poetisa."
Tá.
Minha memória recordará.
"Volta e meia vamos dar..."

Agora sim. Horas da madrugada.
Agora teceremos os versos
Com os fios da lira
E as palavras dançarinas.

Mas são os momentos do vazio,
Da vingança das palavras!,
Que, cansadas da persistência do dia,
Dormem e me mantém acordada.
Ah, como são melindráveis...

Amarga-te, mulher poeta,
Na sanha dessas damas caprichosas. 





Imagem:  Salvador Dalí, "Allegorie de Soie"

KATHLEEN LESSA
Enviado por KATHLEEN LESSA em 03/07/2009
Reeditado em 18/05/2011
Código do texto: T1681292
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