Sarau a Céu Aberto

Um sarau a céu aberto

Poetas anônimos decerto.

De um lado da calçada alguém declama:

“Poesia urbana

Poesia do meio da rua

Quem se atreveria?”

O semáforo fecha para os carros

E eis que alguém se queda parado no meio da faixa:

“Eu me atrevo

E aqui lhes ofereço

A minha poesia

Ou melhor, a primeira

Antes de tudo não sou poeta

Mas algo por dentro me completa

De palavras e sensações

Sou apenas um trabalhador de uma multinacional

Todavia sinto, todavia finjo, todo dia nessa mesma via

Não faço versos, emito fax, escrevo circulares

Há alguém dentro de mim que quer viver sem se arrepender

O semáforo ficará vermelho para mim, que será de mim?

Automóveis, autodidatas, autônomos, alto poder, podem prosseguir”

Em seguida, um lixeiro começa declamando baixinho até gritar:

“Limpo a sujeira de todos

Sinto a sujeira desse povo

Além de papeis jogam chances pelas ruas

Outros jogam sonhos por não acreditar neles

Há quem ouse jogar amor e com ele vai esposa, filhos

E ainda guarda no bolso outra sujeira,

São sujos de alma, muito sujos!

Fumam de forma prepotente seus cigarros de arrogância

E seus filhos também jogam fora toda educação a exemplo dos pais

Que também jogaram a sua e não guardaram para dar para seus filhos

Até quando? Vão se enganando, vão pensando que conseguirão tudo que quer

Enquanto isso vou varrendo, catando papeis, e da forma que as pessoas

Autodestroem-se sem perceber, varrerei seus corpos para manter a cidade limpa.”

O estudante diz: Tanto conhecimento, mas não conheço a mim mesmo.

O assaltante diz: Toda vez que roubo, percebo no céu um belo pôr-do-sol.

A amante diz: Cruzo com a mulher do meu amante, ela me vê, sinto-me traída.

Caos urbano – a grande avenida – as pessoas se fundem uma nas outras

Olham entre si – não se conhecem – são poetas – criam – rimam – ninguém lê!

A declamação de poesia é interrompida para a música:

Buzinas, sirenes, xingamentos, toques de celulares em alto volume.

Um homem com dois seguranças faz sua declamação:

“Poesia? Isso ainda existe?

Mas quando alguém lê não resiste

E querem ler outras e descobre

Que a poesia ainda não morreu

Sou presidente de uma grande instituição

Sou sério, frio, sensato, racional

Meu filho é poeta de verdade e de muita inspiração

Ele mostra suas poesias para mim

Mas só sei reparar nos erros gramaticais

Tal qual faço com meus colaboradores – ninguém acerta sempre

Todavia percebo que mesmo com erro a poesia dele é perfeita

A inspiração é divina, o escrever imperfeito, isso é o ser humano,

Errante com a vontade de não errar nunca mais”

No sarau a céu aberto

Não há poetas de ofício

Mas estão de coração aberto

Num cotidiano difícil

De se encarar, mas ninguém quer abandonar

A vida que também tem muito teatro.

19/06/09

Miguel Rodrigues
Enviado por Miguel Rodrigues em 19/06/2009
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