Foi-se

Foi-se o Tempo da ingênua vergonha

em que se cria em fadas e na cegonha.

Foi rompido o Ovo da Serpente*

e liberto o Mal Onipresente.

Em que ponto me chegou essa temência?

Essa bela demência

que acompanha meus dias

vestida de alegres alegorias.

Agora sou quem se evita.

Pouco importa se já fui amante de Evita.

Findaram-se-me as minas de ametista

pelas quais perdeu a cabeça o pobre Batista.

E qualquer outro sonha ser artista,

quem sabe anarquista,

ou um humilde arquivista.

Já não vejo sinal ou outra pista,

só o punhal do desenhista;

aquele que faz quadros insólitos

de deuses loucos e seus acólitos,

que sempre vagam na noite escura

em busca da última virgem pura.

E eis que tomo Morfina

e lembro que já lavei tanta latrina.

E eis que sonhei refazer o Homem,

mas o Carcará é bicho que mata e come.

E eis que fiz um filho,

cujo caminho já não é o meu. Seguiu seu trilho.

E eis que espero alguma ou toda Aparecida.

E sinto que deveria chamar-lhe de perdida,

de vaca amarela e parida.

Mas eu calo e espero.

Nem sei se é o que quero.

Talvez um prego e um martelo,

na cruz do Justo,

em que se morre de susto

por se ter crido

em tanto doido varrido.

Tanto chão para varrer,

tanto amor para fazer

e eis que nada faço,

pois sonho com a Itabira de aço,

com um nariz de palhaço,

ou com um beijo e um abraço.

Seria bom fazer Poema,

ter uma namorada morena,

uma dor que fosse pequena

e, quem sabe, uma flor de açucena.

Ter uma expectativa mais longa.

Saber o segredo da mulher-aranha que se chama Monga;

e uma argentina cheia de milonga.

Mas agora já é hora,

é a Belzebu que se adora,

e é, por tudo isso, que se chora.

Foi-se o Tempo da Ingenuidade.

Deixei-o em alguma cidade.

A Realidade me chama.

e ninguém, por mim, reclama.

Alguns aplaudem o ignorado drama;

outros, o engodo e a trama.

E se come a mulher que o outro ama.

E nesse lirico bordel

escuto o bêbado Menestrel

proclamar a nova praga,

num profano batismo de chaga.

Será o teste de Malthus,

só os mais fortes e os mais altos.

Mas pobres são persistentes,

para os herdeiros, são insolentes.

Para outros, ainda,

são aqueles que puxam a berlinda.

E é assim que se foi.

E é assim que me fui.

Agora, a noite já não cai.

É o sangue. A vida que se esvai.

* da obra de Ingmar Bergmann.