ÁS DEZ HORAS DA MANHÃ
Esta é a hora em que o sol escreve as sombras
que aumentam a nitidez das coisas,
acrescendo contrastes e suaves relevos
ás planuras insidiosas da manhã.
Com isso, as flores destacam-se,
e crescem para um primeiro plano
como se fossem os rostos dos jardins;
personalidades vincadas e exóticas
a desnudarem-se em verde-folha
nos deboches crus e exibicionistas
de um choque estético
inescapável.
É a hora dos grandes passeios lentos,
sem pressas, nem cuidados.
Dos passos erráticos sob a luz dourada
em divagações por praças e ruas,
e dos prazeres simples da memória
para quem se atreve a tê-la.
Nos prédios cheios de gravatas,
é a hora do banheiro redentor,
do cafezinho estratégico,
do cigarro saboreado com atenção,
da olhada sob disfarce ao tirano opressor,
enfeitado de ponteiros gordos e lentos.
No mundo, há um ligeiro gaguejar,
neste horário aparentemente tão comum,
um leve solavanco estremecido,
uma janela de oportunidades mágicas
para quem quer pintar o dia em outras cores.
Como se um leve compasso de espera
nos permitisse um telefonema para nós mesmos
para perguntar: “-ainda estás aí ? “,
mesmo sabendo que pode não haver resposta.
São dez horas da manhã.
E outra vez eu tentei, mas não pude,
ser poeta, ás dez horas da manhã.
Tentei, mas faltou-me ser possível escolher como destino,
tudo aquilo que apenas se cumpre pelo fado.
Faltou-me um confinamento que eu pudesse derrubar,
uma janela, por pequena que fosse, que pudesse abrir
com um gesto que ninguém soubesse que era segredo.
E um vento que viesse carregado de cheiros salgados,
e brilhos verdes que ondulassem prazeres ao meu olhar,
sempre tão carente de areias e grandes espaços.
Faltou um tempo, corrido entre quilômetros e cansaços,
que desse ao silêncio a oportunidade de ser voz.
Mesmo que baixinha, mesmo que fraquinha e nervosa,
mas que estivesse presente, que marcasse o dia,
que trouxesse, num contínuo sussurrar baixinho,
aquela pulsação primitiva, aos sentidos,
aquela energia vital e naïve com que a vida
escreve, em detalhes, tudo o que a vida é.
Mas ás dez horas da manhã,
todos os dias, nessa horário perfeito
das dez horas da manhã,
num momento especial em que tudo pára,
eu quero ser poeta.
E, por um momento apenas,
só porque eu quero,
crio esse hiato onde fico fora do mundo,
e é como se desse o tal telefonema
e o poeta se expusesse e vivesse,
e me tranqüilizasse por ainda estar ali
- e só depois novamente se recolhesse e adiasse,
e o momento passasse,
e os ponteiros reiniciassem os seus movimentos,
e as mãos retomassem os gestos dos seus segredos,
e tudo ficasse como sempre, em espera...
- Ás dez horas da manhã !
Junho, 2009