O TREM

O TREM

O trem é como um túnel de emergência

por onde escapam os salvados

de um terremoto.

Ninguém transporta nada além

da própria condição de sobrevivente.

Não é a máquina

que torna a viagem possível.

É essa concordância tácita

com repartir misérias e grandezas

em alta velocidade.

É como se todos duvidassem

da multiplicação dos pães e, no entanto,

aguardassem a hora do milagre...

Cada um é vítima e carrasco,

autor e cúmplice da história comum.

Pernas se misturam, se desgarram,

se cruzam e se repartem

num ritual de corpos coletivos

que se movem solidários.

Todos se reconhecem pela angústia

que não está na face eletromecânica.

Mas na roupa, no embrulho, na marmita,

na mala, no sapato vagabundo...

O mendigo percorre o tempo sobre rodas

com um saco de estopa sobre os ombros

como princípio e fim de cada um.

A noiva comprime as coxas e se curva

sobre o assento de ferro cromado

para ocultar a virgindade psicológica

ou a esperança que possivelmente

seja rara entre as princesas da Inglaterra.

Um grupo de soldados e proscritos

espreme o corpo de uma prostituta

que os alimenta de calor e leite.

A paisagem noturna engole a máquina

como a um rio o mar aberto.

Adolescentes operárias riem

de suas relações concubinárias

com o salário mínimo obsceno.

O menino desembrulha um pedaço de pão

e janta solitário...

A máquina metálica se torce

e se contorce como besta amordaçada.

Serpente que engoliu uma república

regida pelo desgoverno.

Embarca-se. Não se pergunta nada.

Não se olha para os lados. Pensa-se baixo

para não acordar a máquina

de seu programa de viagem.

Não se pode baldear em movimento.

Ame-a ou deixe-a. Mas não se força a porta.

Não se quebram vidros.

Não se arranham bancos.

Os mais fortes oprimem os mais fracos

como se estendem pernas para o baleiro

cair com a boca amarga sobre balas doces.

Uma estudante atirada no leito da via férrea.

Uma sexagenária, acometida de mal súbito,

morrendo por falta de socorro médico.

Um sujeito toma o jornal do jornaleiro,

lê todas as notícias e o devolve.

Um pivete retalhando a bolsa de uma jovem.

Um pingente colhido pelo poste...

O trem é o intestino da metrópole:

operários, soldados, meretrizes,

palhaços, estudantes, vendedores,

loucos, ladrões, crianças, suicidas...

Foram todos comidos pelas fábricas,

motores, edifícios, construções...

Marcapassos de ouro dos banqueiros,

despejados aqui como substâncias

de angústias e paixões...

Eventualmente o vômito da morte.

Luzes. Sangue. Letreiros luminosos.

Gemidos. Sirenes. Vermelha escuridão.

Miolos espalhados sobre os trilhos.

Flores carnívoras. Corpos mutilados.

Olhos gritando pela boca calada.

Os caçadores de troféu assistem

à colocação daquilo tudo perfilado

na plataforma,

como num ritual olímpico...

Mandarão desobstruir os troncos

e trocar o maquinista que morreu

e levantar a rede que tombou

e vir nova composição diretamente

do new york city bank

e haverá protestos e discursos e projetos

e substituirão leis novas por leis velhas

e também leis velhas por leis novas

e vão até condecorar a máquina:

Made in Bananas...

Mas nada disso adiantará,

porque não é a máquina

que faz possível a viagem.

É essa concordância tácita

com repartir misérias e grandezas

em alta velocidade.

O trem prosseguirá curando

a claustrofobia da zona sul

a esperança desesperada

o tédio dos aviões

o cansaço da porrada

o atraso da menstruação

a mulher abandonada

a prece não atendida

a comida requentada

o parto mal sucedido

a vida desajustada

a exploração consentida

o assalto à mão armada...

E tudo mais

e mais nada.

Afonso Estebanez

Afonso Estebanez
Enviado por Afonso Estebanez em 31/05/2009
Código do texto: T1624503
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.