Musa de Morph
fragmento
Meia noite, quase dia dos mortos,
Estou vivo entre restos de nudez,
De um tom azul pálido me visto
Para lento esperar o sono!
Esqueço-me num fúnebre abandono,
Nos sonhos dos dias, que é escrito
E não assume o direito de um “talvez”.
Então meu corpo será alado aos portos
Frios de minha ânsia de poeta,
Sussurrarei ao mar minha bile torta
Vomitando os gestos de uma vida morta,
E sobre minha nudez incerta
Desenharei trajes de imperador
Para que me vistam de todas as dores!
II
Sou poeta e quase filho bastardo,
Nascido em um sétimo dia errado
Do senil sono uterino despertado
Para provar do mundo e ser provado
Pela carnificina da bile devorado
E então morrer num paraíso estrelado.
No espaço do poema, que é eterno,
Desenrolarei-me em um monólogo terno
Que te abraçará cheio de calor materno
Te benzerá de um fugaz olhar paterno,
Talvez meu canto não seja tão eterno
Quanto o amor que me é interno!
Derramar-me-ei num tão frenético canto
Querendo dizer que vivo, e vivo amo tanto
E a partir do amor vim a conhecer o pranto
E este me vestiu com o calor de seu manto
E desse calor nasceu a semente que planto
Que desabrocha firme sem violência e enfanto.
E faz-se árvore a sombrear-me a vida
E a me encorajar a cada batalha perdida
Dizendo: - É doce mas pode ser ardida!
Neste meu momento de paz ;desconhecida,
Mergulho em cada estrofe já esquecida
Desejando fazer brotar a alegria ressequida!
Pois sou poeta e sonhos o sonhos dos amantes
Depois desse sonho nada mais foi como d`antes
Segou-me os olhos de pupilas doces e brilhantes,
Na sede da paixão, que tem óleos borbulhantes
Que fritam o coração nos atos mais delirantes
E se fazem, delírios, dos corações tão distantes!
Que mesmo forte não se pode tentar buscar
Pois cada tentativa é como seda a amordaçar
Um coração latejante, que teima em bradar
Brados q`um olhar teu não pode flagrar
E mesmo flagrado não pode nunca decodificar
Por isso o poeta põe-se eterno a sonhar!
Sonharei, eu, o eterno sonho dos apaixonados
Buscarei amor até mesmo nos muros pinchados
Por vândalos, em noites frias, tristes, largados.
Largar-me-ei na anarquia dos endoçados
Pelo amor, que deixa corações despedaçados
E torna todos os arco-íres desbotados!
E desbotados estarão todos os meus ideais
Quando mentir dizendo que já não amo mais
E falsamente jurar pelos meus ancestrais,
Ou bêbado largar-me sozinho no cais
Que me levará a um mar já gasto de sais
A temperarem-me os sonhos, sem os quais
Não poderei ser o poeta que sorri e pena,
Que se veste de vermelho e sem rena
Alguma, busca uma brecha mesmo que pequena
Pra cantar a ti de uma forma até serena
E em um febril monólogo poe-se em cena
Para vencer a desilusão em plena arena!
Frente a frente com o touro da incompreensão
Que tem os chifres feitos de fogo de vulcão,
Tem olhos esculpidos das brasas da erupção
Estando frio, e preparado para a cremação,
Que no pano vermelho da minha imaginação
Está daltônico a avançar rumo a meu coração!
Touro forte, mesmo sem a febre da Espanha,
Nessa tropica e cálida arena ele me ganha
Em cada golpe que seu chifre me apanha
Em dor e pranto meu coração então se banha
Dando-me prazer em uma agonia estranha,
Mas em vence-lo tento a difícil façanha,
Mas o bovino vê nos meus olhos; tensão
Sentimento que alimenta a intensa emoção
De quem procura guiar-se pelo coração
E nós somos dois na mesma desolação
Eu tenso e a esperta e bovina desilusão
Irada na fadiga rubra da minha pulsação!
Cada golpe afoga esse meu cansado peito,
Na areia da arena, exaurido, eu me deito,
Descanso eternamente, nunca estou refeito,
Então do daltônico vermelho me enfeito
Para vencer esse falso Ferdinando, eleito
Com a missão de me deixar frio no leito
Indecifrável que se deita ao alcançar a morte,
Mas ainda me esquivo do touro forte,
Que orgulhoso não quer se render ao corte
E gaba-se de seu majestoso e viril porte,
Que vistará meu obituário passaporte
Desse mundo onde fui sempre sem sorte!
Mas sei que o vencerei na última madrugada,
Quando, do alto, verei toda a cidade banhada
Na luz que sempre a minha grande amada
E quem instantes desejarei ver apagada
Para sempre. E essa mesma noite enluarada
A meu corpo colocarei doce e acorrentada!
Serei como Ismália, mas sem toques de loucura,
Sim com uma desesperada busca pela cura,
Ou remédio para cicatrizar toda a doçura
Que para a vida dispensei sem usura
E da noite enluarada eu terei a frescura
E da pobre Ismália beijarei a alma pura!
Quero perder-me na mesma lua
Que linda, na água, se insinua
Saltarei então com a vida nua
Buscando uma nova manhã crua
Deslizarei nessa liquida rua
Que todo o pecado da alma côa!
Serei eu, só, um só cardume
No tempo perderei o perfume
Decompor-me-ei feito estrume
Da existência atingirei o cume
Sem ser lenda ou costume,
Mas caminho que se rume!
Meu verso será poesia sem apogeu
Nem herança do poeta que morreu
Quando da loucura se padeceu
Para o frio mais profundo desceu
No mesmo dia errado em que nasceu
Foi o momento em que a vida perdeu!
Mas por enquanto vivo e vivo a vida
Sou poeta nessa arena esquecida
Estou sem lança e desguardenecida
Está essa minha defesa suicida
E despeja a fria lágrima perdida
Na areia, na arena de areia endurecida!
Como pedra que não se move ao vento
Estando fria e dura como cimento
Que petrifica todo o humano sentimento
Do poeta morto esquecido ao relento
Na arena, na morte, passivo e lento
Que me arrastará com a fúria de um cento
De plantas carnívoras e frias
A devorarem-me a carne todos os dias
Sangue, pele e minhas poesias
Toda minha fé e as heresias
Que sonhei no delirar das alquimias
Que prontas pus em ralos de pias!
Este poeta já dormiu no sono do gim
E não foi tão pecaminoso assim,
Mas até hoje as marcas habitam em mim
Só sorrirei quando puder dizer o Sim
Para as belas águas do meu fim
Então terei a sonhada paz, enfim!
Deixarei para trás todo o pecado meu
Serei somente eu mesmo e eu
Serei talvez chamado de poeta ateu
Destruir-me-ei feito o Coliseu
E quando esquecer que é improvável o céu
Lembrar-me-ei de tudo o que o mundo esqueceu!
Já sabem que não quero ser sepultado
Talvez eu pense em ser cremado
Mas prefiro as águas e se for encontrado
Tomem com meu corpo todo o cuidado
Fui matéria de um poeta perturbado
Que veio e se foi sem nenhum legado!