O HOMEM DO BEIJO SEM LÍNGUA
No seu único beijo em vida,
ele engoliu as palavras.
Beijar profundamente
foi uma sensação única
de rapto da própria alma.
Aurelino,
sempre mudo aos interrogativos porquês,
criou, à revelia, um bigode vasto
só para censurar a boca
aos beijos que, eventualmente, viriam.
No seu único beijo em vida,
ele comeu as sensações.
Beijar silenciosamente
foi um calo ao silencio
de grito à língua decepada.
Aurelino,
comunicativo e de gestual exclamativo,
jamais feriria seu bigode farto
só para pelar a navalha
aos fios que, cegos, mataram papéis.
O beijo, para Aurelino,
significa engolir, à seco,
a face do mistério da boceta molhada.
O beijo, para Aurelino,
representa comer, sem saliva,
a hóstia da bunda da mulher de quatro.
Aurelino,
desde que o beijo é beijo,
evita que os sentimentos da fala
brinquem com sua alma de tamanduá.
Aurelino,
desde que o bigode é bigode,
evita que as sobras dos alimentos
grudem em sem corpo qual parasitas.
Cansado por não beijar,
espalhou, um dia, aos amigos:
— “O beijo não sabe amar!”
Aurelino,
pai de treze filhos,
amante de meia Bahia,
sete mulheres: uma pra cada dia,
jamais imaginaria que, invejado pela morte,
nem suas mulheres ou filhos
descobriram a boca do pai e amante
que, atrás do farto e vasto bigode,
seus beijos escondia.