ESCREVO COMO QUEM GRITA

Rascunho com sangue na parede da caverna

Verso com a pressa de quem escreve no muro

Canto como quem bate prego

Como quem rima na praia por um qualquer troco

Não há tempo pra decifrar enigmas

descobrir significados

hermeticamente trancados em hierogrifos

em escritos do Mar Morto

Escrevo como grito estes panfletos primais

Escrevo como arma

com o gatilho puxado

e atiro pra todo lado

mesmo sem técnica e primor e sem beneplácito doutor

como quem não pode

sem licença

expor

na sua barraca de camelô

seu cordel

sua rima sem prumo/ seu medo/ sua dor

Escrevo como grito

Traço destino sem rascunho

murmuro em alto falantes

rebelo como um sem-guarida

nau desgarrada

me lanço da torre dos preconceitos

totens do dinheiro

me incendeio como aceno

e queimo-me inteiro

Palavras duras e quedas livres/ Grito

Descrevo/ crivo

páginas da vida endividada

retiro a seiva que destilo

letras-vida sem censura e mensura oficial

Dura é a trama que descrevo

do gueto revelo

outro som outro sol

onde o nó se faz com dor/ desprezo/ temor

Escrevo aos gritos

boto a boca no berrante

panfleto

com lavras próprias

com pá de dores

com lágrimas

com frases de paz e degredo

com raiva e fogo

com dor e horrores do gueto

Escrevo como rasgos

como acenos afogados

como gado no matadouro

vendo navios indo com ouro roubado

levado além-mar

olho aceso

peito batuque

muque feito

Escrevo como o escravo acorrentado pela mão pelo pé

escrevo por dentro

sem pena/ tinta/ caneta

sem pena dos feitores

sob o açoite

à noite

até que não chegue dia sigo na noite sigo gritando letras e dores/

revolta/ rebeldia/ coragem

à margem do oceano