Mais um dos poemas longos, para quem tiver paciência. Foi conservada a ortografia original.

NEFAS    (1)
 
 
A despeito de toda a consciência,
A despeito de toda a determinação,
Talvez ainda o melhor de nós
Seja o involuntário em nós.
 
Uma noite aconteceu
Que o humano me tocasse.
Todos os impulsos de vida,
Todos os impulsos de vida,
Acorreram, condensaram-se,
Retumbaram escandalosamente.
Aconteceu naquela noite
Que o humano se revelasse
Ante mim com estridor e crueza.
Naquela noite eu dormi comum-príncipe;
Sei-o pelo retumbar nas estrelas.
 
É uma questão de sensibilidade:
Eu já vi a crueza humana
E tive que renascer das penas.
Não foi fácil gostar de mim –
O humano é desconcertante;
Quantas vezes eu me repugnei.
 
“Desce até fera, até instinto,
Desce até verme, até impulso,
Desce até barro, perde-te
E reencontra o divino sopro,
Resgata o teu humano”.
 
Jamais vou atingir o excelso;
Se há algo de que gosto em mim
É a minha imperfeição;
Gosto em mim de meu humano,
De meu sensível esdrúxulo,
E eu o chamo de meu poeta.
Gosto ademais de meu adolescente –
É o que de melhor houve em mim,
É o melhor que restou em mim,
E eu o chamo de pequenino amigo.
 
Gosto de meu contraditório –
O contraditório é um país
Maravilhoso, pleno de possibilidades
Ricas, vivas, fascinantes,
Terra natal de meu humano.
Será que ser contraditório
É uma forma precoce de ser completo?
Mas o mundo não me perdoará.
“Ad astra per nefasta”, merda!   (2)
 
Não sou humilde, nem piedoso;
Antes ao contrário. Acredito mais
Que eu veja por outra óptica
O caminho que leva às estrelas.
Eu busco; se não encontro, eu fundo.
 
Nem sempre foi assim, tão suave,
Tão leve meneio. Houve as horas nadas, (3)
As horas todas de auto-abdicação.
Neguei-me como quem acreditasse
Em uma religião proibida demais;
Quantas vezes invoquei o Nada!
O Nada longe está de ser
Coisa nenhuma; o Nada é denso.
Eu precisei viver o Nada,
Elemento essencial de todo encontro.
 
Sou arrogante sem onipotência;
Finco pé em minha falibilidade
E defendo-a como legítima,
Necessária e muito bem-sã.
Não pretendo infinitude:
Terei o meu Juízo Final,
Mas o meu julgamento não será fácil;
Terei muito a argumentar com Deus.
 
Não se impingirão pecados em mim,
Exceto na eventualidade de se entender
Que eu tenha traído o sentido sagrado,
Sublime, autêntico, da Vida.
Na verdade, não tenho medo,
Não vejo qualquer provocação –
Afinal, quando Deus nos criou
E nos deu toda a Liberdade,
Ele nos levou muito a sério;
Nós é que não O levamos a sério.
 
Os meus sentimentos delimitam
A minha individualidade –
A ninguém concedo julgá-los.
Invoco o direito de sentir
O que brotar inspirado pelo nefando
Ou pelo Espírito Supremo,
Que, em absoluto, não distingo.
Mas eu confio no virtuoso
De minhas emoções. Enrubesço,
Sou capaz de pudores virginais
De meus sentimentos íntimos.
 
Sonho com um mundo
Onde amar seria bom,
Seria sempre bom,
E poder-se-ia amar
A quem se quisesse
E as pessoas veriam nisso
Sempre uma virtude.
 
Eu não me defino. O meu coração
É livre para experimentar o amor,
O ódio, o medo, a inveja, a solidão.
Já odiei por puro amor ao ódio;
Já me senti triste, triste,
Como só pode sentir-se triste
Alguém muito triste, mas em paz.
 
A consciência usual não comporta
Certas compreensões; não as permite.
Só no metafórico e no metafísico
Coloca a vida determinados valores,
Essenciais. Só em certas rupturas
Há memória da Criação.
 
Eram felizes os dias de Paraíso,
A natureza pródiga e indulgente
Seduzindo com o eterno permitir.
Espíritos por ali havia:
Formas brandas, lindas;
Aquela gente diáfana
Era outra espécie de ser.
Se anjos existissem,
Anjos seriam assim,
Dançando ao som das fontes,
Brincando de imaterialidade,
Construindo fusões de si mesmos,
Amando, roçando, bulindo,
Amando, sorrindo, amando
Numa inconcebível forma de amar
De que nos resta a lembrança
Arquetípica e fragmentária
Que chamamos de orgasmo.
 
Dizem que comemos de um fruto
Proibido e perdemos o Paraíso;
Que ganhamos a liberdade,
Mas perdemos aquele amor raio de sol,
Música de cascata, sorriso de criança;
Que ganhamos uma consciência,
Que recebemos um corpo sensível,
Que aprendemos a distinguir
Entre a essência do bem e a do mal.
Eu não sei como foi,
Mas sei que não foi assim.
Sei que nos incorporaram excrescências
Como pecado original, eterna expiação;
Deram-nos consciência e a calcaram.
Deram-nos o desconforto da alma
Mal cabendo, mal ousando,
Com rancores desde a partida:
“Vai, confessa as tuas culpas, padece”.
Um irmão disse que era “felix culpa”, (4) 
Mas eu não aceito!
Não há culpa feliz, não há culpa.
Acredito que haja irmãos, vários,
E haja tantos que não o sejam.
Acredito que haja homens
Que beijem prostitutas
E outros que não as beijem.
Apenas em certas sutilezas
Coloca a vida os degraus de consciência
Que ascendem ao Paraíso.
 
Há em cada gesto de vileza
Ou de amor um pulsar
De uma coisa chamada Homem.
Eu quero penetrar no ínfimo
Supremo absurdo do Homem.
Eu quero compreender porque
Há no amor uma devoração,
Uma raiva ou gula maior
Entre a garganta e o coração.
 
Nós vivemos dos grandes medos
E morremos dos mais pequenos,
Por isso é preciso repensar o céu,
É preciso descer um pouco mais.
Toda a veste má que nos puseram
É uma veste má que nos puseram;
Não permito, pois, que julguem aquilo
Que o Alto Ser me concedeu.
 
Tenho lembranças de minha
Ascendência incorruptível.
Sou fiel às minhas paixões –
Nada muda sensivelmente,
Aos olhos da eternidade,
No decurso de uma vida.
A minha alma está inflamada,
“Flama mundi, flama Dei”. (5)
Hoje eu sou um ser que vive
Dentro de um outro ser,
Um espírito extemporâneo.
 
Pequeno ser em mim presente,
Companheiro de lida sem ser eu
(como faculdade que se transpõe),
Pálido lampejo do mistério
Inextricável de haver sol em mim,
Ocorra-me num sutil acaso;
Ocorra-me nas horas mais densas;
Ocorra-me no encontro do Nada
Com o Tudo e os fecunde;
Ocorra-me por uma casualidade
Não muito estranha aos passos da realidade.
Como a música de Piazzolla
Que se encontra com a música da gente,
Todo encontro é benfazejo.


               Rafael Teubner – Verão de 89/90

 (1) : "Nefas" vem da expressão latina: "Per fas et nefas", ou seja, por meios permitidos e por não permitidos.
(2): “Aos astros por (caminhos) não permitidos”.
(3): “Nadas” : advérbio flexionado, apenas para concordar poeticamente com “todas”. Com toda a licença.
(4): “Culpa feliz”, referida ao pecado original de Adão e Eva e à expulsão do Paraíso.
(5): “Chama do mundo, chama de Deus”.



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