Este poema faz parte do conjunto de meus poemas longos. Perdoem-me os apressados e impacientes, mas eu não conseguiria sintetizar tudo isso. Adotei o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, 31/12/2015.

DAS COISAS DO ESPÍRITO E DE DEUS


 
 
 
Estando eu, um dia, dentro em meu próprio ser,
Nas plagas da imensidão interior
E absorto em jornadas alheias ao tempo,
Encontrei pegadas de quem, creio eu, seja Deus.
 
Não sei se primeiro a consciência ou o espírito,
Ou se este anterior a qualquer princípio,
Mas sabe algo dentro em mim
Que sempre vaguei por estradas sem fim,
Como cruzado de desafios transcendentais –
As perguntas me perseguem,
Mouras caçadoras, terríveis, ferinas,
E eu não posso evitá-las,
Mas eu persigo as respostas
E sou feliz por isso.
 
Sempre o dilema crucial,
Se fui eu um espírito que encontrou o seu corpo
Ou um corpo que encontrou o seu espírito.
 
Não sei se corpo, primeiro,
E depoisumespíritoinserto;
Não sei se espírito prisioneiro
Ou espírito emancipado, liberto.
 
Instigado, palpitante, crédulo,
Procurei o mar, sempre o mar,
Ocaso indistinto de todo caminho,
E a música dolente ou ruidosamente
Lúbrica. Praia rima com pedra;
Onda batendo faz a rocha cantar.
A música, essencialmente boa,
Inspiração do ritmo, do todo, nasce do mar.
 
Cesse tudo o que outrora
Me animava nas horas de desolação.
Não mais necessário! Tanta poesia,
Tanta poesia, que não há como colhê-la.
Fui ser feliz, passear pela orla,
No encontro água-terra-céu,
Levemente escarpado e sensual.
 
Será que essas pegadas nas areias
(que uma onda mais altiva despistou
ou elas que, se esvaindo, não vão nem vêm)
Inexistem, de repente? Ou quem busco entrou
No oceano? Ou deste saía, quando notei-as?
 
Prestes ao oceano havia ruínas
Seculares de um mosteiro jesuíta;
O teto tombado pela ação temporal,
Ou não importa por qual fúria celeste,
Permitia as alcatifas e as samambaias.
Era de novo natureza, nos musgos,
Nas aranhas em teia, na brisa liberal
Pelas ventanas caídas, indolentes.
Ali houvera tribunas de fé,
Jantares frugais e circunspetos,
Louvações ao Deus dadivoso, é certo.
Procurei pelos cômodos vagos
Resquícios da existência da divindade patrona,
Restos dos autos de tal veneração.
Não! Somente o silêncio, o sol poente.
Quantos daqueles velhos claustros
Não assistiram ao apogeu de tantas vidas!
É incrível que Deus habite conventos,
É incrível que Ele frequente ermidas.
 
Sento-me sobre um penedo vadio
Até que a noite se faça e os rujos
Se confundam com vozes em surdina.
Gosto da noite, à beira-mar,
De seu calmo silêncio . . .
É mais fácil escutar Deus.
 
O sol que nasce acorda os insetos
Que acordam a gente. Natureza!
Espio em torno todo o além . . .
Deus é algo que se busca dentro.
E lá fora? Deus ou Deusa?
 
O meu espírito sincroniza-se
Com o espírito do tempo,
Corifeu de meus pensamentos.
Só o meu espírito é livre;
O meu corpo não é livre,
A minha manifestação não é livre,
E isso me causa tanta dor.
Por que buscar Deus, em sendas
Onde sou eterno viageiro?
 
Há sentimentos que são rendas
E engalanam a vida, os amores.
Há sentimentos que são tendas
E refrigeram a sede, as dores.
Há sentimentos que são lendas
E tornam heróis os lutadores.
Há sentimentos que são sendas,
Desafios vívidos, carmas, senhores.
 
Eu sou um ser espiritual,
Tenho profundas preocupações
E, lamento, frustrações existenciais.
Mas não posso nem menos e nem mais.
Por que buscar o meu espírito a Deus?
Esse espírito que tem bilhões de anos
E não compreende certas coisas
Ou as compreende tão completamente
Que eu não posso atinar com a sua coerência.
 
A vida fica estranha assim, prisioneira
De um tempo, de um modo coletivo,
De um consenso, parecida a uma ilusão,
Parecida a um voo singular
Sem memória de voos passados.
Não! Não procuro Deus como tal que se conheça,
O Deus absurdo, sem pé nem cabeça.
 
Deus ou Deusa? Faz sentido o amor
Que tem o seu lado criativo, fecundo,
Mas que também estiola o ânimo, a vida?
Ah, Senhor Deus-Mãe, Criador,
Por que nos destes o espírito tacanho,
Insciente, mas perscrutador, vígil,
Com garantias no nascedouro,
Porém fadado à solidão, à carência,
Ávido de um sentido que o norteie
Ou de um amor que o nutra
Ou de um Deus que o preceda
Sem deixar passos dúbios na areia
Ou vazios de passado nas ruínas da fé?
Senhor Deus, mãe ou pai,
Por que nos destes a cisma
E a permitistes com tanto amargor?
 
Nós vivemos do muito que vivemos
E do pouco que morremos.
Morremos do contrário disso,
Buscando raízes, a noção
Anterior à noção, as sementes
Das leis sábias e imutáveis
Que nos chegam antes que a vontade de Deus?
Às vezes me ocorre que Ele seja o pai
Que guarde o doce para o filho dileto,
Mas que o instiga com duros desafios.
 
Não me parece que seja nem aos rudes
E fortes de corpo e de desígnio,
Nem aos vigorosos de espírito,
Que Deus privilegie. Antes,
Os flébeis, os sensíveis de alma,
Os guias da noite, os poetas,
Anjos de asa quebrada,
Caídos do céu entre nós
E que Deus logo vem buscar,
Parecem aquinhoados pela Fortuna.
 
Quem sabe, até entrar no Céu
Doa um pouco? Heróis, felizes,
Os que enlouqueceram de amor
E desceram ao Inconsciente de Deus,
Os que viram o Destino ser talhado,
Os que tiveram a chance de se conceber
E de renascer a seu próprio gosto.
Se eu tivesse certeza de não doer,
Eu gostaria de renascer,
Mas o fato é que dói, dói mesmo.
Deus nosso, quanto falta para ser completo!
Vale até admitir pequenas falhas,
Sementes morais da completude.
 
Deus criou a Si-mesmo;
A chance foi-Lhe dada,
A Sua coragem testada,
E por isso Ele é Deus.
O Criador tem tudo dentro de Si –
Há Nele a mulher histérica, concubina,
Capaz de gostar de um bandido.
 
Mas Deus não Se criou perfeito,
Onipotente, autossuficiente.
O preço inexorável da onipotência
É o medo de si mesmo,
De se encontrar terrível e fulminante,
De se encontrar sozinho das simpatias
Dos bons dentro do Universo.
 
Deus criou-Se diverso.
Magnífico Criador, que sempre foi
E terá sido o Deus da Diversidade.
As pessoas criativas erram,
Pois criativas – criem-se os erros, então.
Há erros para serem castigados;
Há erros para serem corrigidos;
Há erros para serem tolerados;
Há erros para serem compreendidos;
E talvez haja erros para serem admirados.
 
No primeiro dia Deus criou o Nada;
No segundo dia Deus criou o Tudo.
Depois, Deus criou a Eternidade
Para preencher o imenso interregno.
 
Deus criou a mulher ser perfeito.
Depois, não satisfeito,
Coçando a barba, disse:
“Alguém que ‘inda evoluísse!”
E o homem foi feito.
 
Então parece-me que completude
Seja completar-se, seja esse dom
E essa irmandade com o Criador,
Esse passo entre antítese e síntese.
Não é Deus que sabe de tudo,
Mas tudo é que sabe de Deus.
 
Deus não poderia errar,
Não poderia mostrar a mão sinistra.
Deus fez do Homem o laboratório de erros,
O tubo-de-ensaio dos absurdos da Criação.
O Homem erra para que Deus
Faça a afinação de seu Universo,
Para que Deus não erre nunca,
E por isso sinto-me importante.
 
Mas isso está nas raízes e no impulso
Que tomamos na saída. O timoneiro
Da nau de nosso destino somos nós.
Deus não manipula a criatura –
Se Deus manipulasse as pessoas
E as coisas, a consciência seria horrível
E o espírito, nosso vínculo com Deus,
Seria inútil e hipócrita,
E eu O odiaria por fazê-lo.
Mas Deus não o quer e não o faz,
E eu O amo por não o fazer
E sinto-me grato e feliz
E participo do ensaio da Criação.
 
Muitas vezes eu senti inveja de mim,
Nas minhas horas de triunfo,
Por não ser eu todas as horas assim.
Tive de aprender com as estrelas
Que a altivez e o brilho, de regra,
Custam uma distância quase infinita
De um abraço humano ou de um afago acalentador
Ou de um decurso dentro do possível a nós.
 
Talvez no fundo, no fundo,
Onde Deus concebe tudo,
Onde Deus começa tudo,
Onde Deus olha-me como a um outro deus,
Um pouquinho dentro de mim
Seja um pouquinho assim,
Razoável, coerente e de bom-senso.
 
Deus é substância de minhas idealizações,
De minhas esperanças, todas,
De meus estados de graça com a natureza,
De meus momentos mais ofegantes
De vislumbrar o quanto tudo é belo,
De meu encontro com um nexo
E com um sentido e uma coerência
E um desejo de alma de ser em paz.
Deus é a substância-refrigério
Dos momentos em que me esqueço
Para ser a criatura diante de Deus.
                                              
 
 
Ano-Novo, 1994.
 
RAFAEL TEUBNER