ROTEIRO DA SOBREMORTE

ROTEIRO DA SOBREMORTE

A gente não era esta carne

a gente não era este espinho

a gente não era esta nave...

De repente assumiu-se caminho.

Ela veio estevando através do universo

e a nós associou o joio dos espíritos

(centelhas subitâneas das divinas subjeções)

e a gente entrou como flor na manhã ou

súbita janela deflorada pelo dia...

E como era um só roteiro

sem destino luz nem som

Ela então inconcebível

concebeu-se Armagedom....

Em tudo Ela punha a agonia do amor

na espera.

Os raios de alabastro do sol recém-nascido

tecendo cordões umbilicais no ventre das colinas

o mar ensaiando pulmões ao sopro do vento nas velas

as feras gritando no túnel da noite

ou nascendo uma flor.

E o mistério enredava atos sestros de amor

donde vinham à luz

fantasmas e bastardos e negros e brancos

– os irmãos.

E a gente ia surgindo

da manhã amanhecida

– bom dia, minha amada!

– bom dia, minha vida!

... ia por aí reconhecendo tudo

como se Ela fosse apenas isso

que antecede as lucipotentes primaveras...

A submissão da terra sob os pés

milhões de rotas subjacentes nos passos dos meninos

a ilusão sativa nas constelações dos caminheiros

o luxo de poder julgar irmão o verdadeiros irmão

perder a vida dando nome às pedras

dar uma rosa livre ao mundo que a rejeita...

Mas é tempo de antiflora

sob tanques de antivida

e a liberdade é lançada

sob patas de corrida...

A vida, antes de tudo

é reconhecer...

o que se toca como quem fecunda

o que se encontra onde tudo está perdido

o que tange os rebanhos para os campos

exorciza com fuligem a manhã dos operários

o que conduz à guerra os comungados da pátria

na conquista do após-as-conseqüências...

A mão que solta a esperança no céu escasso da ilha

ave que parte e regressa

à nossa espécie andarilha...

Foi Ela quem traçou à espécie

a porta concessória da agonística

no embate pela igualha mal provada

e pôs setas cruzadas nos caminhos:

– gente pra montar leis timocratas

– coisa pra fazer o pão dos ricos

– gente pra mandar na coisa escrava

– coisa pra poder haver os mitos...

Há gente que sempre ganha

no jogo bilateral

de repente a roda pára

todo o mundo fica igual...

... caminhos do após acontecido

milhões de primaveras saturadas

virgens inseminadas por enguias soltas

em tempo estéril de estiagem

onde são murchas as romãs rubras da carne

e é morta a flor

e é morto o pólen

e os pássaros são mortos.

A esperança... evento interrompido

como a raça humana num centauro.

E a gente sabe que é a Morte

interrompendo o caminho...

Ma de longe eu reconheço

a doce face da amiga

que pôs no termo da carne

as auroras do infinito

e na noite do universo

a alvorada do meu grito:

– bom dia, minha amada

minha vida, minha sorte...

E vou jogar-me nos braços

da Vida de minha Morte...

A. Estebanez

Afonso Estebanez
Enviado por Afonso Estebanez em 12/05/2009
Código do texto: T1589016
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