MEMÓRIA DA CRIAÇÃO
MEMÓRIA DA CRIAÇÃO
Tempo de sentir alegria
Ocorre na vida da gente
Como se fosse primavera,
Revertendo, memorial,
O que o gesto não alcança mais.
Zumbe um som no ar,
Cigarra ou cio puro;
Imensamente flui a vida
Nos Jardins do Paraíso.
Numa suculência, numa bondade
Permissiva e matriarcal,
Brota mel das gretas
E o lagarto balança o rabo.
Sequoias gigantes, bastas samambaias,
Criam um cenário sensual
Para o retorno aos dias da Criação.
Parece que a Vida se eterniza
Na vida secular dos vegetais.
Lembra-me: uma fonte cantava,
Criativa, serena, infantil,
Com essência de musicalidade.
A alma iriada de uma cachoeira,
Pelo reluzir do sol,
Alçava e punha viço nas ardósias,
Nas paredes frinchadas e puídas
Dos grotões, nas avencas louçãs.
Uma hera perene ascendia
Por um muro, desde o materno;
A partir da mesma substância,
Um algo vago chamado poesia,
Como samambaias algo tão eterno,
Formava os climas e os sentimentos
De toda a gente que havia.
E não havia muito mais luz no ar,
Apenas mais lucidez e brilho,
Mais evidência, mais razão.
Havia também mais clima,
Uma presença consoante
Com as coisas brandas por ali;
Uma presença parecida com música,
Sem que houvesse qualquer música.
Todo o em torno era ocupado
Por uma certeza e um nexo
E por uma finíssima virgindade.
Estamos lá, no Paraíso,
Manhã do dia da Criação.
As coisas naturais não foram criadas;
Elas sempre existiram assim,
Metafísicas, transmutantes –
Nós é que fomos criados, os espíritos.
Como um som de flauta
Que trila no ar
Sem a flauta
Que o faz soar,
Vaga o Espírito Puro,
Essência diáfana
E intraduzível, sem substância
Que lhe pese ou limite;
Vaga o Espírito Primal,
O indefinível de todas as essências
E essência de todo o indefinível.
O Grande Espírito não é um ser:
Numa noite que não teve começo
E que culminou sem decrepitude,
Ele juntou a sua essência
À substância havida por ali
E formaram-se os espíritos, seres.
No início nós éramos uma turba divertida
De espíritos joviais, alegres.
O Grande Espírito chegou
E disse-nos: “Vão por aí,
Espalhem-se, encarnem-se;
Penetrem no âmago da matéria,
Descubram o sentido da vida”.
Hoje nós somos esse não sei se dom,
Virtude, vício, vicissitude.
Somos seres distintos,
Aprisionados a um corpo,
Perplexos pela materialidade da vida,
Procurando um sentido pra vida.
Nós outros, espíritos, somos filhos.
Não, nós não somos deuses;
Nenhum poder sobre a matéria,
Nenhum poder.
Às vezes nos falta talento.
Nós somos Príncipes,
Filhos do Espírito,
E a ele servimos;
Por isso nos pesa esse fardo, a mente.
Só é-nos dada a inspiração –
Em nosso mundo somos príncipes,
Mas aqui padecemos
De uma inépcia crucial.
Nós esperamos um tempo, uma apoteose;
Temos a impressão de que o Destino
Ainda está prestes a começar.
Buscamos a Unidade
Contrassensualmente
Nos caprichos da diversidade.
Logo as coisas farão sentido;
Dentro de dez milhões de anos
O Homem estará por aí;
Lavoisier estará por aí,
Criando tudo, perdendo tudo,
Transformando tudo.
1990