"BELA CRIAÇÃO"
Sou o avesso do avesso
Sou a fortaleza que cai
Do livre sou o empeço
Sou o que entra e não sai.
Sou o brilho da escuridão
Da forca, sou o nó
Sou a chave da prisão
Dos males sou o pior.
Sou ave de rapina
Sou o breu que o cego vê
Sou a lâmina da guilhotina
E a sede de poder.
Do carrasco sou a mão
E a falta de caridade
Sou a dureza de coração
E o sorrir da maldade.
Sou o sangue que a terra rega
Derramado por todos nós
Sou o pai que o filho nega
E do silêncio sou a voz.
Sou a gelidez da morte
No último sopro de vida
Eu sou a falta de sorte
E o chorar por comida.
Sou coruja agoureira
Sou marcha de funeral
Sou o “treze” na sexta-feira
E ao bem não sou igual.
Sou a carne pra navalha
Sou o feto do aborto
Sou caixão, sou mortalha
E a cova para o morto.
Sou o cisco nos olhos
Sou a ponta do espinho
Sou o sofrer de molho
E a pedra no caminho.
Do gozo, sou a ruína
E a ação do mal feitor
Sou o mal a cada esquina
Sou discórdia, sou desamor.
Sou qualquer imundícia
E a ausência de desvelo
Sou a elevada malícia
E aquele pesadelo.
Sou as muitas orgias
E a sanguessuga voraz
Sou a brevidade de dias
E a violência em cartaz.
Eu sou a desgraça
E o carecer de pudor
Inda sou o dia da caça
Na vida do caçador.
Eu sou a desventura
E o andar para trás
Sou a amarga loucura
E a inércia do incapaz.
Sou a serra da devastação
Sou a natureza morta
Eu sou a poluição
E o gosto acre da derrota.
Sou poeira, sou chão
Sou o ínfimo dolo
Sou o veneno do escorpião
E até o desconsolo.
Eu sou o preto gato
Por debaixo da escada
A esperança, eu quem mato
E trato a miséria por camarada.
Sou o fundo do poço
E uma sarjeta na vida
Sou o carnicão do caroço
E o magoar da ferida.
Sou o grito no nada
Sou áspide, sou serpente
Sou a língua afiada
E o crucificar do inocente.
Sou a morte encomendada
Sou o cúmulo do absurdo
Sou a honra maculada
E a parte ruim de tudo.
Eu sou a glutonaria
E o roubar da consciência
Também sou a patifaria
E toda desobediência.
Sou a privação de lenitivo
Antídoto não posso ser
Eu não sou um bom motivo
Nem aquilo em que se pode crer.
Eu sou a preguiça
E a apurada deslealdade
Sou a danada da cobiça
E o blasfemar da verdade.
Do coxo sou a passada
E a lágrima da despedida
Sou a calma desesperada
E aquela dor mais doída.
Eu sou a vingança
Com seu gosto adocicado
Sou o abandono por herança
E um rosário de pecados.
Eu sou a avareza
Também sou o adultério
Sou o outro lado da nobreza
E o ranger dos portões do cemitério.
Sou um corpo sozinho
Sou o falso testemunho
Sou a carência de carinho
E a fraqueza do punho.
Sou a vara pro castigo
Do ferro sou o ferir
Sou o se passar por amigo
Sou hipocrisia... E daí?
Da besta sou os pés
Do dedo o apontar
Sou o ídolo dos infiés
Sou o desdém, sou o zombar.
Sou o matarás e o furtarás
O desejar a mulher alheia
Eu sou a falta de paz
E o traidor presente à ceia.
Sou aquele expulso do paraíso
Sou vurmo, por que não
Não sou teto nem piso
Sou apenas a solidão.
Sou o lixo do luxo
O caminhar do perdido
Sou o feitiço do bruxo
E derrubar do caído.
Sou a injúria e a luxúria
Sou a pura libertinagem
Eu também sou a fúria
E a falta de coragem.
Eu também sou o luto
E o choro da viuvez
Não sou Bem-aventurado fruto
Sou a fina insensatez.
Sou o cálice de fel
Sou Pedro três vezes mais
Sou o antônimo do céu
E o santo que nada faz.
Sou o tronco pro escravo
Sou o marceneiro da cruz
Sou o martelo, sou os cravos
E os açoites de Jesus.
Sou a crença do louco
Sou a maior das pragas
Sou o nada nenhum pouco
Eu sou todas as chagas.
Eu sou a babel
A infâmia eu sou
Sou o delito do réu
E a figueira que secou.
Sou a incerteza do amanhã
Sou planta seca em terra boa
A injustiça é minha irmã
Meu ego: Minha coroa!
De Deus sou bela criação
Que vaidade e soberba consomem
Sou a obra da Sua Mão
Que Ele chamou de homem.