NO ECO DOS ABISMOS
No eco dos abismos, a ilha
canta. Ou grita, estridente,
como as garças, em direcção
ao sol. É um som profundo
que trespassa a linha do horizonte.
Tremem as flores
e despertam os pescadores
da sua faina habitual, obrigatória.
É como um apelo
em forma de aviso. Do mais alto
monte
alguém anuncia o seu regresso.
Em terra, com as redes vazias,
pensam noutros dias
para relembrar a sua história.
A ilha grita. Como as gaivotas.
Sente-se prisioneira dos seus grilhões
vulcânicos.
Os seus habitantes, ilhéus,
atlânticos,
conhecem o som dos seus gritos,
as canções
que lhes traçam novas rotas.
Mas ficam-se pelos abismos,
no silêncio dos penhascos,
sonhando com outros tempos
e viajando, a cada minuto, sob
as velas de caravelas
remotas.
Têm a memória dos antepassados,
as labaredas do incêndio
devorando a madeira.
Na boca, a palavra de Camões
arranca-lhes a sabedoria
do compêndio universal.
Nas suas páginas vencem a fronteira;
já não são ilha, descortinaram nevoeiros,
arrumaram a pedra ao longo das encostas.
Das suas mãos brota a força das águas.
Gritam, como as garças. Ou cantam.
Mas dão sinal
de vitória sobre o mar
onde esqueceram por amor à terra
todas as suas mágoas.
José António Gonçalves
(inédito.06.02.05)