O DIA EM QUE FUI EMBORA

Quando o sol se por, quero estar ao seu lado,

para dividir o pão, a cama, o pedaço de chão,

para respirar junto o mesmo horizonte que vier nos visitar,

para afagar junto a mesma crina de paixão que couber nos nossos desejos.

Quando o sol se por, quero ser a foto que ilumina a sua mesa,

para refletir nela os meus pelos mais arrepiados e safados,

e poder traduzir o que seus olhos não dizem para o mundo, mas dizem para mim,

e puder decantar cada véu que encobre a sua alma, um por um.

Quando o sol se por, quero rasgar todos os medos que um dia untaram as suas nucas, gargantas e calcanhares,

quero ser capaz de conduzir cada um dos seus passos como um cão-guia fiel, como uma ferida que perde a casquinha sempre na hora que cicatriza,

quero ser o colo no qual todos os seus barcos irão repousar ao final de mais uma jornada daquela rotina infernal.

Quando o sol se por, quero chamar todos os nossos filhos pelo nome, sem esquecer nenhum deles, mesmo os que não tivemos, ou que não soubemos ter,

quero poder abraçar os seus acordes mais desafinados e colocá-los de quatro, colocá-los do avesso, colocá-los para correr daqui,

e assim deportar para o fim do mundo tudo o que lhe faz mofar, tropeçar, encher de musgo, encher de frieira, encher de asneira.

Quando o sol se por, quero ser merecedor dos seus aplausos, como se fosse a minha mais derradeira apresentação dessa vida,

quero ser capaz de escutar o que você não consegue dizer, o que não consegue arrematar, o que não consegue terminar,

quero ser capaz de ser o seu amigo mais esperado, talvez para quem nunca tenha aberto a sua porta, talvez para quem nunca tenha oferecido um pedaço de pão,

quero ser capaz de envolvê-la inteira com meus braços só para fazê-la dormir, só para fazê-la sorrir, só para fazê-la viver mais um dia.

E assim, feliz como imaginei que nunca seria possível, vou recolher as minhas coisas, colocar tudo numa trouxa e ir embora para sempre.

Porque estará cumprida a única missão que me fez chegar até aqui.