O ÚLTIMO TREM

Vem amor, já está na hora.

Já aprumamos todos os nossos filhos, já tiramos o pó da vida, já lavamos todas nossas fantasias.

Vem querida, vamos...

A comida está se traduzindo no fogão, as remelas do medo não nos encurralam mais e os risos de festim não nos fazem mais dançar nem escorregar.

Vamos linda, vamos...

A nossa vida está alvorecida, podemos olhar para as nossas nucas como se estivéssemos numa legião estrangeira, numa legião estrangeira.

É pra hoje, é pra hoje?

Já colocamos caixa sobre caixa, nem precisamos mais perguntar se tem armadilha pra depois do almoço, se alguém vai desafinar em algum gole

qualquer.

Deixa disso, vem logo...

Treinamos de sobra os passos da nossa dança, deixamos amadurecer cada fio do nosso cabelo, deixamos viver cada feto que pusemos nesse mundo.

Cada feto que pusemos nesse mundo.

As nossas cortinas já fecharam e abriram infinitas vezes, até para uma platéia que dava dó de tão pouca, que dava dó de tão pouca.

Vem, querida, poxa vida...

Pega na minha mão como da primeira vez e esquece as fraldas sujas que colhemos pelo caminho, esquece as vozes roucas que esquecemos de entricheirar, esquece os trecos bizarros que se escondem na sua bolsa, na sua boca, na sua pálida sina de operária asilada numa republiqueta qualquer.

Porque a nossa hora chegou e nós, acredite, perdemos mais uma vez o nosso trem.

Perdemos de vez o nosso último trem.