Cotidiano
Cotidiano
Rosália Cristina
Ai de mim se passasse este dia
Sem o quadro animado do beijo.
Tomou-me um extasiado contentamento
Defronte a dois corpos que atenderam o desejo.
Ai de mim se neste corrido dia
Não visse o alinhamento dos lábios
Que se pintaram num anoitecer que caía
Despudorados corpos, lisonjeados.
Que se vá o cimento do dia
Ai de mim!! O tormento das rotas.
Ai de mim!! A rotina da retina.
Que se vá! Do contrário: ai de mim!
Foi o beijo o descansar do meu dia
Ai de mim, que não sou vazia
Que com beijos d’outros, seco tintas
Ai de mim, se não estivesse nessas linhas.
Ai de mim se meus músculos trabalhados
Valessem-me o contentamento do dia,
Se a minha cabeça continuasse baixa
Percebendo do café, só as curvas de
/ suas espumas.
Não veria dois lábios num intento de amor
Não creria, pela estupidez do dia, no amor
Não sentiria, no findar do dia, o amor
Ai de mim se não reconhecesse o amor.
Não seria poeta, nem cotidiana.
Não me diriam artista; só melodramas
Percorria-me no alento do leito,
Um simples papel em branco.
Ai de mim! Ai de mim!
Se o papel saísse daqui, em branco
Tal qual o cal das paredes
Do meu cotidiano, ai de mim!
Não me teria o brando espanto
Dos testemunhados beijos pelos cantos.
Ai de mim, se o plural consentido
Não me desse acalanto
Nesse possível isolado cotidiano.