SOU
Da verdade, sou deslizes,
do pensar eu sou objeto,
das cores, suas matizes,
do amor, o desafeto.
Da tela sou a moldura,
do cego, a sua bengala,
da queda, a sua fratura,
do caminho sou a vala.
Sou do porquê o senão,
do talvez, a todavia,
do porém, o sim e o não,
da síntese quem sabia.
Do prazer sou quem estraga,
da certeza, o maior medo,
do rogo sou a praga,
da ferida sou o dedo.
Da esperança quem aguarda,
o atraso de um retardo.
Prejuízo de quem tarda
e a mancha do bastardo.
Da mentira sou o efeito
e da razão sou a regra,
da ordem sou o respeito,
do suspeito sou a entrega.
Da tentação, o desejo
da aceitação, a licença,
do teu olhar sou o beijo
do depois a consequência.
A embriaguez da cachaça,
da bodega sou o otário,
do engraçado sou sem graça
do bêbado sou calvário.
Da sua oração, a crença,
o efeito do ditado
dos encéfalos, quem pensa,
dos mestres, o esclerosado.
Do encontro sou o momento
sou do amor a intensidade
da ruptura, o sofrimento
do adeus sou a saudade.
Dos contos, a sua fada,
do abstratro, a existência,
do que sobra sou o nada
e da droga a dependência.
Sou platéia e espetáculo
ator, representação,
do seu papel sou obstáculo
do roteiro, o contra-mão.
Sou o nada e sou o tudo
sou contra e sou a favor,
fraco ou forte, sobretudo
para todos ódio e amor.
Ainda sou quem decide,
sem nada podendo ser,
a todos e a quem duvide,
e a mim, até morrer.