Carta a um ancestral
Carta a um ancestral
Paulo Camelo
Permite que te escreva.
Não te conheci mas te admiro.
Não te conheci
assim como nenhum de teus descendentes
netos, bisnetos, trinetos..
Por não me conheceres,
talvez estranhes.
Estranhes a ousadia,
o tratamento, a grafia,
estranhes o mundo
se eu te contar
a quantas o progresso nos levou.
Sim, o progresso. Teu ideal,
aquele progresso que perseguiste,
alimentaste, ajudaste,
não o reconhecerias.
Desculpa também a grafia
com a qual me comunico,
se estranhas a ausência
daquelas consoantes mudas,
dos dígrafos hoje modificados.
Perdoa também o tratamento,
meu falar intimista,
todavia respeitoso.
É que o mundo de hoje
nos leva a isso.
Hoje estou a te escrever
como um filho teu talvez não ousasse,
quando aqui tu estavas.
Não entendas com isso
que eu te imaginaria um tirano.
Tu não o eras.
Mas a vida é finda,
teus ideais e projetos
contigo sepultados.
No teu pouco viver, porém,
criaste e transformaste,
amaste e foste amado.
Na cidade e no campo,
entre as casas
ou entre os canaviais,
iluminando as ruas
ou semeando as várzeas,
foste sempre o tão inesquecível
Urbano.
16/01/1987