BATO COM POESIA NA PORTA DOS INSENSATOS

1.

Sou um poeta torto

que se inebria

com idéias retas

Equilibro-me no vento

e observo atento

as feridas do mundo

Sofro e rompo

o espaço restrito

que me designaram viver

Danço feito louco

pra manter-me ereto

Vivo num tempo avesso

De desalentos e desatentos

Tramo entrelinhas

Fio entre palavras

Lavro a terra com sede

e semeio poesia

Incendeio-me vivo

com fogo do coração

e aceno à margem

pra chamar a atenção

Eu sou mesmo um poeta torto

Meio bobo

Meio criança

E até feliz

2.

Volto a me armar de versos

Palavras-bala

Palavrariete

Bato com poesia

na porta dos insensatos

no couro duro dos insensíveis

Sou pele e alma

ossos e aura

Bato com vida

na grade

na trava

e estouro o cativeiro

Solto rimas pelas ruas e praças

MÚSICA DE FERRO E FOGO

Com meu verso me feri

talhando palavras de pontas.

Na madeira seca

esculpi distâncias

Pó, estrada e solidão.

Farta é a sede

que seca e desertifica o sertão

Escrevi com lápis em punho

como arma em riste.

Verso triste duro e seco

Cruel como o êxodo enxote desprezo

Injusto tempo de arame e farpa

botando gente na estrada

Boiada rumo à cidade

Com palavras de ponta

Fiz essa canção cega

Seca e sem melodia

Cantada como um soluço

Um urro, um uivo, um grito.

Música de ferro e fogo

D’um seco solo sertão Brasil

De terras de ócio,

de fome, raiva e aflição.

Com palavras em riste

vi o povo indo à frente

com passos e brado forte:

- Ou se ocupa terras do ócio,

ou se morre seco

com fome, raiva e aflição.

Ou se reforma o campo

ou se continua cativo

de coronel, deputado e ladrão

ESCREVI NO MURO

Escrevi tudo no muro:

Amor raiva dúvida solidão

Com pés no chão fui estrada

Mato relva areia inverno sertão

Vi os séculos e suas máculas

Mortes grades balas feridas

Com as mãos moldei o agora

História ação coragem coração

Fui pasto de leões alvo bandeira

Meu deus como dei bobeira

Fiquei quieto quando não devia

Meu anjo me proteja da acomodação

Afinal eu discordo da dúvida

De pagar com ouro com vida

Duvido dos donos do mundo

Do dólar da libra do euro

Por isso ateio fogo no breu

Levanto a minha cara pra alvo

Descerro arreios pesos seculares

E escrevo anseios pela cidade

Não espero mais a editoração

Não tenho grana pro livro

Pra censura crítica encadernação

Escrevo tudo direto no muro

Amor raiva dúvida solução

Dedicada a todos os grafiteiros, os poetas das tintas

PELA LIBERTAÇÃO DA PALAVRA DO LIVRO

Pela libertação das palavras dos livros

Que ganhem pernas e asas

Que ganhem as praças e olhos e mentes

Pelo fim do isolamento dos livros

em prateleiras vistosas, empoeiradas

Esquecidos nas bibliotecas particulares

Pelo fim das lombadas douradas

Como se livros fossem peças fixas

Mera decoração barata

Pelos pincéis, tintas e poemas nos muros

e na expressão diária dos telejornais

Mais literatura nas novelas e menos celebridades

Pela poesia nos out-doors, nas praças

Em espaços fixos, em murais, em varais

E tribunas para todo mundo se expressar

Pela palavra livre, solta,

andando a toa por ai, tomando de assalto

velhos, crianças, espertos e incautos

Pela literatura nas vilas, vielas, favelas

Em versos, em trovas, em prosa

O povo declamando vida pelos poros

Que analfabeto conquiste a palavra

E a use como arma todo dia

Que o literato a lance a todos

Que o Brasil seja um país novo

e o poeta que fabrica o biscoito fino literário

possa enfim saciar o povo

GENTILEZA – O DERVIXE DAS LETRAS

Ele abandonou a métrica

a regra gramatical

a estética oficial

E saiu por aí escrevendo vida

com vísceras e merda

com sangue e alma.

Ele abandonou o terno

o emprego o salário

o status quo

e caiu no mundo

fazendo vida com mãos pés e estrada

Fez isso porque via a vida impura

injusta e estranha

Na praça o mendigo lhe doía como cárie

Na esquina prostituíam-se meninas

e a criança consumia-se com o crack

A cidade ácida a tudo cumpliciava

Nos palácios tomava-lhe o asco.

Ele abandonou a técnica

e aderiu a ética

Deixou o conforto dos mortos

e ganhou a vida dos aflitos

Deixou os livros na estante

e escreveu no muro na ponte no viaduto

Eles deixou a gentil vileza

E se tornou Gentileza.

Fez de si escrita-vida

espalhando sua ira santa

e sua coragem pacífica

Rebeldia vadia que não mais se continha

e lhe vazava pelos poros

e escorria pela mãos

e subia pelas pontes e árvores

e voava com os pássaros

e espalhava-se com o vento

e chovia como água e brotava como semente

Sua escrita-vida precisa

dispensava livro e edição

impregnava-se pelo muros

e podia até ser apagada

mas logo se acendia em outra parte

em outras mentes

E continua ainda como uma grita vinda da garganta do povo

Texto dedicado ao Profeta Gentileza, que escreveu seus mandamentos e pensamentos pelos muros e viadutos do Rio de Janeiro. Abandonou o status quo e viveu seus últimos dias como mendigo – na realidade cumpria sina de um dervixe das letras.

ESCRITA-CORPO

Ele resiste só com alma

Escreve sem ter mãos

Pinta sem paisagem

Canta sem ter voz.

Ele cria com existência

Historia com seu passo

Seu descanso é desmaio

Sua poesia é vida

- eloqüência muda que entorpece.

Estar vivo é tudo

Seu dia-a-dia é página densa

Martelo

prego

e picareta - são como lápis e letras do livro-vida

Escultura-carne

Pele cravada qual marca o formão na madeira.

Ele rala-se e sangra

Seu rude corpo é livro de história

Rugas e nesgas

Ossos e pele

Ele pisa sem enredo prévio

Bebe da própria sede

Come o próprio umbigo

Cala o próprio grito.

Respira rezas

réstias

e transpira luz

Dedicada aos cegos cantadores, aos repentistas, a todos que fazem arte bruta e a quem sabe que palavras e arte não são exclusividade dos eruditos. A literatura é de todos.