NO 13º DIA DA TORTURA DO SONO
Esta manhã o Sol,
vermelho de vergonha,
veio espreitar se ainda vivo.
Sinto-me num barco que se afunda.
Só eu flutuo
à deriva num mar encapelado,
as tábuas unidas por um fio inquebrável,
jangada varrida por chicotadas de tormenta
com agressões de rochedos a doer nos ossos.
Desço ao fundo de mim. Ao menos
aqui encontro segurança.
À minha volta os monstros investem
mas só por fora a carne sangra.
Recosto-me
num monte de recordações
que as vertigens não deixam ordenar.
Ah! Bem desejam os monstros apreendê-las
e por isso espreitam desesperadamente
através dos meus olhos.
Mas, entretanto, eu desliguei a lâmpada
que dava luz cá dentro.
Estou suspenso de mim. Acho que vou cair.
Mas não. As paredes é que rodopiam
e abrem-se agora à passagem de figuras brancas,
monstros de cal, corpos recortados.
Quem são, quem são? Ah, não apertem
pois quero respirar.
Que ouvidos são aqueles pendurados no tecto?
Como conseguiram entrar na minha cabeça
e escavar, escavar... ?
Rio-me, pois nada encontrarão
a não ser uma ampulheta marcando o tempo,
cada vez mais difuso.
Rio-me, sim, com um riso de sangue em brasa.
Eles tentam isolar-me cortando as amarras,
quebrando as antenas,
destruindo a bússola.
Mas eu continuo a orientar-me
rompendo o nevoeiro do seu ódio.
O meu pensamento é uma escada em caracol
a que faltam degraus.
Ontem à noite escorreguei
e quase mergulhei no sono universal.
Mas hoje, com o render da noite,
senti-me vivo e gostei.
Amo a vida, o amor, a liberdade.
E é por isso que morro pela vida,
odeio pelo amor
e pela liberdade estou cativo.
Soltam à minha volta palavras-mastins
que ladram e abocanham:
“Diz!”, “Declara!”, “Fala e vais dormir!”
(sons para mim sem nexo).
Ó monstros pobres diabos!
Nem sequer se apercebem que não podem
vergar esta barra
dura como a vontade.
Deixei-me cair em indiferença de algodão.
Desisti de fazer o puzzle que trago nos olhos.
Sons e imagens, podeis vogar, sois livres,
podeis confundir-vos, bailar.
Gargalhadas na parede, ameaças,
olhos a passear pelo chão,
bichos repelentes, répteis,
hálito podre de polícias suados,
mãos na garganta, lápis
a rolar sobre a mesa como um bulldozer,
tudo isto está prensado
nesta muralha de ódio à minha volta.
Dentro de mim está a vida.
Dentro de mim trago os companheiros que se agitam,
dentro de mim trago os povos que fervilham,
povos que recusam a vala comum
e reconstroem o Sol.
Dentro de mim está o amor
que se transmite em ondas de confiança.
Dentro de mim
há um carregamento de certezas
implacáveis.
É por isso que o meu sorriso
é uma arma de agressão
que transforma o ódio em desespero.
Dentro de mim, bem no fundo de mim,
é que está a passagem para a liberdade.
Mas só eu tenho a chave do alçapão.
( Prisão de Caxias, Outubro de 1972)