A insustentável leveza do ser

... Ah meu amor, subamos!

subamos

além!

além daquilo que sonhamos

alcemos um vôo acima de nossa cama

acima de nosso quarto nosso telhado

nossa rua nossa cidade

subamos

subamos como leve pluma

como doido passarinho

subamos acima da métrica

de qualquer rigor cronológico

acima de todas as convenções

subamos

e sobrepujemos a lei da gravidade

toda lógica newtoniana

(e que nenhuma lei corrompa nosso ímpeto de liberdade)

subamos

subamos, meu amor

subamos

ao som de um rock progressivo

... Confortably Numb...

... da 9ª Sinfonia...

... Beethoven Mozart

subamos!

subamos

até compreendermos que a música é o próprio silêncio em

movimento...

subamos

subamos!

Veja, meu amor, nossos corpos sobre a cama...

veja como descansam, profundamente...

escutai a doce melodia do sono

como respiram fundo como transpiram

como rolam sobre o cobertor

como dizem coisas indizíveis

nossos corpos sobre a cama...

coisas que certamente deixariam o Dr. Freud consternadíssimo...

são anjinhos? são mamíferos?

nossos corpos dormindo...

Deixemo-los dormirem o sono dos anjos

deixemo-los gozarem o sono profundo

que relaxem vossos nervos vossos músculos

que esqueçam vosso tédio

essa terrível vontade de se matar...

Deixemo-los, meu amor

deixemo-los gozarem o sono profundo

amanhã a cidade cuidará de consumi-los

furiosamente

nas usinas nas fábricas nos escritórios nos automóveis

nos edifícios do medo

lentamente

como quem traga um cigarro

Deixemo-los dormirem o sono dos anjos

nosso corpo operário

nosso corpo funcionário público

nossos corpos tão cansados

fatigados pela lei da gravidade

dormem

dois casulos jogados na cama

enquanto nós, duas borboletas, voamos!

Flutuemos em nosso quarto

sobre a semi-escuridão de nossos móveis

flutuemos

atravessemos receosos o telhado

veja, meu amor, um gato!

subamos mais alto! mais alto ainda

até que nossa casa seja apenas um ponto perdido na

luminosidade da cidade longínqua

subamos!

ah subamos mais alto! subamos além

veja ali, se não é a Esplanada dos Ministérios?

algumas brumas sobre o Paranoá

e aqueles carros pequeninos

passando lá embaixo...

as luzes de Brasília ao longe... ah

subamos!

subamos mais alto

devassemos as nuvens

visitemos as tempestades

peguemos a furiosa corrente de ar

olha o relâmpago! Que trovããããoooooo!!!

oh já podemos divisar os mares

ali o Atlântico! ali o Pacífico!

a maiúscula América Latina

América minha América nossa

América de Guevara e Neruda

vestida sob um véu de nuvens carregadas vindas do Pólo Sul

tantas luzes na Europa! poucas (quase nenhuma) na África!

mas subamos! subamos mais!

A todo vapor, meu amor

A todo vapor,

subamos!

Rompamos a atmosfera terrestre

esse campo que nos envolve com sua força

contemplemos o mundo girando azul em

torno de si mesmo

e evoquemos Gagarin

1961

gritando:

“A terra é azul”

e subamos

subamos além

e visitemos satélites

a lua

meteoritos

asteróides

antigos lixos espaciais

Peguemos carona na calda de um cometa

que nem o Pequeno Príncipe...

"Lembra, meu amor, do Pequeno Príncipe?"

Então vamos!

vamos regar flores no asteróide B-612

cortar os baobás

contemplar muitos pores-do-sol num só dia

E partiremos

partiremos para longe

bem longe

cada vez mais próximos de nós mesmos

e havemos de bailar

rodopiando com as estrelas no infinito!

E voaremos

voaremos

Havemos de contemplar deslumbrados o nascimento de

uma nova estrela

a morte de outra

e ávidos

mergulharemos no seu corpo profundo

(como será sua textura? seu gosto? sua temperatura? sua profundidade?)

E voaremos

voaremos além

ao longe

e se porventura você se cansar da nossa aventura, meu amor,

eu paro!

e paramos

e voltamos

voltamos!

velozes

vertiginosamente

como estrela

cadente

rasgando

furiosamente

o espaço!

e (súbito) nos esborrachamos

frontalmente

na sólida face de um cometa

e acordamos

num pulo

sobressaltados

com o estrépito ridículo de um despertador ao pé da cama

acordamos, meu amor...

acordamos

(enquanto a cidade inteira se levanta)

acordamos

***

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 13/02/2009
Reeditado em 07/04/2010
Código do texto: T1436459
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