A minha, que é tua vida.
Não se meta comigo, cara.
Se você viaja a noite e eu não,
não me venha dizer que de dia o mundo é azul.
Nos muros que ergui, sempre escrevi o mesmo livro:
Aqui morou um rapaz com os olhos abertos.
E as vezes que a chuva apanhou-me à toa, nadei nas bocas de lobo da esquina de sua rua.
Mas nunca, se fui dormir às três, rezei o santo anjo de trás pra diante. Essa heresia é só minha. A vida também.
Hoje, quando te acenei, não pensava no sal do almoço. Que faltou em nosso prato.
Das filhas que tive, vinte e três estão agora em Berlim e vinte e cinco não sabem a tabuada dos oitos. Algum dia ainda vou tratar as espinhas.
Mamãe disse que teu suor é adocicado no cheiro. Tomemos mais uma taça.
Não faça caso se o cachorro latir. Pariu a cadela e três elefantes dormem sob a castanheira.
Não reclame do meu entusiasmo em humilhar as pessoas daqui. Você também, quando estava naquele lugar, dizia “bom dia; tudo bem; como vai?”, aos passantes da avenida.
Da vida de palhaço, guardo ainda sua bela cabeleira. Está na gaveta mais de baixo, bem lá embaixo. Faz tempo que não é penteada. Fique de quatro para pegá-la e relembremos os tempos circences já idos.
Veja o abajur. É aquele feito na aula de entusiasmo iluminativo. Tentei vendê-lo. Os pretendentes sobraram. Faltou mercadoria.
Dos LP’s, o que dizer? São teus, mas não houve quem os escolheu por reembolso postal. Quero de volta só o de capa arranhada.
No último bolero que dancei, quebrei uma terceira perna. A cantante me seduziu e engoli um microfone com Martini.
Corte essas unhas antes de comentar a respeito do “câncer nefasto entranhado na política nacional”.
Você não quer doar órgãos e tecidos? Sim eu entendo.
Só quando morrer? Sim eu entendo.
Abaixe a tampa do vaso e cuide de sua vida.
A minha? Cara, nem sei quem ela é.