Alguns poemas do livro "PALAVRÓRIO" - de Tchello d'Barros
"PALAVRÓRIO" | Poemas | ®
Cap. I
SUL
VERBO SOLTO
Porque falo o que quero
Há quem ache que não devo
Não há medo que me cale
O que vivo ouço e vejo
Mas berro aos quatro ventos
Sou desses e me atrevo
Porque assino o que digo
E grito alto o que escrevo
POR AMAR UM AMOR-MOR
Em amor amar uma musa
Num ardor adorar uma diva
Um arder em louvar uma deusa
E pagã sacerdotisa
Os céus que ora nos fitam
Num cio de concupiscência
Em licenciosa orgia
E lúbrica simbiose
Acendem fogo e libido
Densa paixão na lascívia
Em desejos de volúpia
E sem deixar por menos
Errar nos erros de Eros
De Afrodite e de Vênus
DE PERFUMES E PERFÍDIAS
Olores de sândalo
Perfumes na brisa
Marulho de ondas
Pegadas na praia
No calor da tarde
Ao sol tropical
Dilatam pupilas
Acendem desejos
Um úmido vento
Aromas de pétalas
Níveas nuances
Essa tarde que arde
Hoje denuncia
Alguém tão ausente
SUBLIME SEMBLANTE
A paisagem de um rosto
E um breve tremor no corpo
Acendem a luz nas fagulhas
Que ardem por toda a pele
A pupila acende a íris
Joia no rosto amado
Como fugidias nuvens
Num poente de ouro
E os olhos nessa face
Duas mandalas fugazes
Doces gotas do oceano
Ilhas gêmeas de um exílio
Um corpo todo lânguido
Em esguia silhueta
Tépidas dunas sem fim
Romã de raros aromas
Ferve um rio caudaloso
E queima o leito nas veias
Águas que ardem por dentro
Nas torrentes do desejo
Nos relevos do corpo um afago
Toque na pele em carícia
Onde arde a chama um afeto
Ígneo furor em ternura
As nuvens levam um rosto
O poente leva um nome
Mas não levam da memória
Um certo sublime semblante
NA PONTA DO LÁPIS
Papel virginal
De cálido rosto
E face tão branca
Recebe a visita
De um tímido lápis
A mina desliza
Percorre a folha
Nos traços que nascem
E fixa o grafite
Num gesto infinito
Nas linhas que surgem
Dos riscos e letras
No raso papel
Emergem desenhos
E versos diversos
Os traços do lápis
Percorrem a folha
Não mudam a vida
Não curam o mundo
Nem salvam o homem
Mas este grafite
Com poucos rabiscos
Desenha um corpo
Revela um rosto
E escreve teu nome
PERGUNTAS PARA A LUA
A lua de prata
Rainha das nuvens
Refulge no alto
Um disco que lembra
Olhar de pantera
No meio da noite
Ela ouve a pergunta:
- Será que os sonhos
Se tornam reais?
Ela não diz nada
Ainda silente
Ouve outra questão:
- Amor de verdade
Será que existe?
Nenhuma resposta
Ao halo lunar
Alguém inda indaga:
- Será que existe
O tal do destino?
E a lua calada
Mas o disco de prata
Em um lusco-fusco
Deixou essa dúvida:
Passou uma nuvem
Ou piscou a Lua?
EM SI NUA EM CIO
Incêndios internos:
Lascívia no tato
Desejo no olfato
Libido no olhar
Fogo crepitante:
Encontro de olhos
No suor dos corpos
A se engalfinhar
Chama incandescente:
Delícia no cio
Lúbrica volúpia
Ao se saciar
Sutis labaredas:
Ardente calor
Em gozo e tremor
No ato de amar
VISITANTE INESPERADA
Meia-noite e meia-lua
Num sonho ela aparece
Uma musa que oferece
Seu corpo em pele nua
Rosto de diva calada
Um sorriso agora nasce
Nos olhos em sua face
Sem dizer uma palavra
Ainda em sono profundo
No êxtase do encontro
Um frenesi no encanto
Com a musa do outro mundo
Já no fim da madrugada
Ela então desaparece
Outro dia amanhece
E o sol nasce na alvorada
BEIJO NA CHUVA
A chuva na rua
Surge de repente
E molha dois corpos
Imersos num beijo
São gotas de água
No suor da pele
De ambos colados
Em úmida tarde
Arde um encontro
Alheio aos pingos
Saliva nos lábios
E olhos fechados
TERMÔMETRO DE AFETOS
Um romance caliente
Nasceu fervendo à mil
No princípio foi tórrido
Desejo suor e cio
Mas o calor com o tempo
Foi ficando por um fio
E virou cubo de gelo
A zero grau de tão frio
MATEMÁTICA COM CALÊNDULA
Taça de espumante brüt
Em diáfano cristal
+
Canto de musa pagã
Ecoa de madrugada
+
Fotografia de um rosto
E memórias de um beijo
=
Transbordam na ilha do olho
Gotas com gosto de sal
INADIAVELMENTE
Dizem que a vida passa rápido
Mas que não passa em brancas nuvens
O tempo é que segue em frente
Sempre silente e invisível
Em agendas e calendários
Dizem que o destino desenha-se
Em linhas na palma da mão
E os traços do rosto no espelho
Há tempos que vêm se entrelaçando
Para contar nossa trajetória
Na vida somam-se percursos
De ruas cidades países
Também pousos e travessias
Hangares portos e marinas
São afetos e são saudades
Dizem que na vida os momentos
Em que cabe a palavra amor
São inadiáveis e urgentes
Como o último abraço
Antes de uma grande viagem
DE INTENTOS E INSTINTOS
A lua cheia transborda
Noite alta e madrugada
Nos meandros de um idílio
Um encontro dos amantes
Na memória o intento
E na carne o instinto
Esquecer já é distante
Tanto quanto este instante
Na noite um corpo no leito
No leito um sonho no sono
No sonho um beijo na boca
No beijo uma jura de amor
Mas na vida os encontros
São prenúncios de partida
Pelo menos a lua cheia
Volta e meia tá de volta
PRIMEIRO E ÚLTIMO ENCONTRO
Nimbus acima do açu
Flanam no céu em silêncio
E miram-se como Narcisos
Sobre o espelho das águas
No leito calmo do rio
Lá no fundo essas nuvens
Contemplam-se espelhadas
Num beijo na superfície
Mas o caminho das águas
É seguirem para lá
Diferente desses nimbus
Que o vento traz para cá
Águas e nuvens separam-se
Com a dor das despedidas
Mas felizes pelo encontro
Um presente do destino
AS PEGADAS APAGADAS
Dançam nuvens lá no céu
Para o sol desta tarde
O branco dessas nuvens
Fazem rimas nesta praia
Com as espumas das ondas
Essas tépidas marolas
Antes de voltar ao mar
Roubam beijos da areia
Acordam as conchinhas
Molham os pés das gaivotas
E as pegadas na areia
Do casal que ali passou
As ondas também levaram
Antes mesmo que acabasse
Essa história de amor
ESPADA ALADA
Arde a palavra espada
Na superfície da língua
Aço ígneo rutilante
Silhueta curvilínea
Lânguida em seu cio
Um lume cicia a pele
A lâmina na epiderme
Fende o ar ofende a aura
Entra silente na carne
Adentra sutil na alma
A(r)ma-se a meia-noite
Sacia sonora o fio
Sem fim que apenas penetra
Até o centro do peito
E toca uma gema de ouro
Um pássaro bicador
Dilacerando cerejas
Fere o coração áureo
Que derrete flamígero
Fluida lava vulcânica
Crava na ferida crua
Alada e insinuante
No alvo indefeso do tórax
Um centro de labirinto
Um duplo (c)oito deitado
E sem trair a si própria
Foge da carne pulsante
Como se nada houvesse
A joia de ouro ferida
É tempestade de raios
O PÓ DO POEMA
O pó do poema
É barro e lama
Ou barros e lume
Em verso ou drama
Poeira de letras
E vozes ao vento
Nuvem de estrofes
Que voa ao longe
Poema poeira
É limo é lema
Pó que se espalha
Em lenda ou dilema
ENTRE A ALMA E O CORPO
Ainda que a alma toda
Caiba dentro do corpo
E a luz dentro do ser
Viaje além da pele
É no corpo do poema
Que a alma da escrita
Numa luta entre letras
Vai fazer sua morada
E na escritura dos versos
Que brotam de um idioma
Nasce a luz da poesia
Que traz lume ao poema
Embate em linhas de texto
Tem poema que é assim
Escreve-se a si próprio
E nem cabe mais em si
TORRE DE PAPEL
Arar as palavras
Unir caracteres
Que voam ao léu
As raras palavras
Uma sobre a outra
Totem de papel
Amar as palavras
Em mil idiomas
Torre de Babel
Armar as palavras
Em torres de versos
Que chegam ao céu
POEMA POSSESSO
Ser um réu confesso
Ser um réu com fé
Em poema-processo
Sem corpo delito
Nem corpo deleite
Ou corpo de letra
Juízes em ritos
Declaram ao júri
Sutil veredicto
Versos incomodam
Assim subversivos
Perturbam a ordem
Declara-se o bardo
Sem apelação
Por tudo culpado
ALA DA PALAVRA ALADA
Versos que voam ao longe
Aos destinos mais incertos
Muito além dos horizontes
Rumo ao desconhecido
Voando aos quatro cantos
Levam cantos de aedos
De rapsodos e de bardos
Às esquinas deste mundo
As palavras ganham asas
Atravessam as fronteiras
Letras que são como pássaros
Sobrevoam as cidades
Vão pousando com seu canto
Nas clareiras do sublime
TRAÇOS DA VIDA
Poeta publica um texto
Impresso por um bom preço
O tempo passa sem pressa
Ante essa falta de apreço
Mas o destino travesso
Tem ali outra meta
Uma traça traça o poema
Em atroz troça ao poeta
TRAÇAS DA VIDA
Certos escritos num livro
Talvez mostrem um problema
Uma traça a traçar
Um verso desse poema
E engasga-se na rima
Que fala sobre um dilema
Onde diz caber a vida
Na ponta de uma pena
ESTAÇÃO DAS LETRAS
O que leva esse trem?
Donde veio aonde iria?
Carregado de estrofes
E muita palavraria
Diversos vagões de versos
Nos trilhos da poesia
Ele veio de Pasárgada
Vai pra ilha de Utopia
PAVLOVE
Difícil mudar o mundo
Vide a prova dos 9
Melhor se a mudança vem
Num jeito peace & love
Mas certas coisas só mudam
Com coquetel molotov
IN: VER NEVE
Padece o outono
Chega outro inverno
Perece nas rimas
Este fogo interno
E um floco caindo
Parece eterno
QUEM DIZ E QUEM FAZ
Há quem faça
O que diz
Quando cumpre
A palavra
Proferida
Há quem mude
O que disse
Assim culpa
O destino
Nessa vida
Há também
Quem nada diz
Sem alarde
A missão
Foi cumprida
PALMAS PARA PALMARES
Palmares nem mais existe
Já mudou até de nome
Ainda que permaneça
Nalgum mapa da memória
Terra de homens valentes
Terra de belas mulheres
Highlanders de um planalto
Longe de tudo e de todos
Das grimpas da araucária
A gralha azul alça voo
Há quem parta sem voltar
Início de uma saga
Onde tinha uma jornada
Bem no meio do caminho
AS CAPIVARAS NO AÇU
São várias capivaras
Passeando na cidade
Comem e bebem e dormem
Sem tributos nem impostos
Saciam seu cio no açu
E assim inculpes copulam
Nem buzinas ou sirenes
Assustam esse sossego
Mas fitam desconfiadas
Certos seres invasores
IDÍLIO NO EXÍLIO
Pouco cabe na mala de viagem:
Nem águas do rio Itajaí
Nem o poente na Ponte de Ferro
Uma camiseta de malha branca
Que uma moça costurou no Garcia
Ou quem sabe lá na Vila Itoupava
Um par de copos de claro cristal
Translúcido rutilante e feérico
Para um dia brindar a felicidade
Bem cabe nessa mala de saudades
A música de uma gaita harmônica
Ouvida em sábado de Oktoberfest
E um desenho estampado na alma:
Tépidas mandalas iridescentes
De um certo par de olhos de berilo
Ainda fotografias e autógrafos
Cabem mil afetos de Blumenau
Mas talvez não caiba teu coração
100 MEIAS PALAVRAS
Com três paus se faz uma canoa
Com três pessoas se tem uma igreja
Com três palavras se faz um poema
Com dois paus se faz uma cruz
Com duas pessoas se tem ambos
Com duas palavras uma cruzada
Com um pau se arma a barraca
Com uma pessoa se tem alguém
Com uma palavra uma matraca
Com meio pau se tem um poste
Com meia pessoa se tem aquém
Com meia palavra basta
Cap. II
LESTE
“A poesia é o ponto de encontro entre o poder divino
e a liberdade humana”
Octávio Paz
HÁ RISCO
Na linha do traço
Surge a silhueta
Que nasce num risco
A forma que emerge
Em si insinuante
Um corpo esguio
E por um momento
Talvez o piscar
Do olho no cisco
Num breve instante
Um gesto de dança
Se fez de um rabisco
ÓLEO SOBRE TELA
No ateliê
A tinta por si
Desliza veloz
Lambuza o pincel
Tela de fio cru
Recebe outra cor
Seja em tom-sur-tom
Ou num degradê
O branco no breu
Tom quente ou frio
Suave matiz
Em cálida tez
Paleta em anil
Essa luz do sol
Ilumina um céu
Boreal de azul
TANTAS TINTAS
Para a arte aparecer
Nuance que se revela
Nas medidas de uma tela
Em seu limite escasso
Em cada tom renascer
Cobrir a tela de tinta
Na mão o pincel que pinta
Tão voraz quanto Picasso
E misturar a tintura
Plasmar toda a pintura
A partir de cada traço
Mais que figura e fundo
Pois cabe todo um mundo
Sem limites neste espaço
BOM DIA ETERNIDADE!
Fosse um dia de ano novo
Alegrias de um janeiro
Que poderiam durar
O mês todo o ano inteiro
E durasse ainda mais
Por mais tempo mais além
Além de todos os séculos
E mais séculos: amém!
O SIM AO SOM DO SINO
Ao som de um sino
Ouve-se uma reza
A sanha de um riso
Um raso cicio
E toca o sino
Que zune num sonho
Insano e insone
Um som que se some
Música do sino
Assina um destino
Não há quem não sinta
O peso da sina
SÓ DÁ DÓ DE SI
Acordar com sono
Numa corda bamba
Ser na corda um nó
Acordar em sina
Na cor de um sonho
Sem ser mais que pó
Acordar insano
Num acorde o tom
Dura nota dó
Acordar insone
Som de nota pura
A dor de ser só
ENTRE IDAS E VINDAS
Viver é fatal
Passar pela vida
Este ir e vir
Entre o bem e o mal
Ao fim da viagem
Depois desse corpo
Quem sabe ser anjo
Ou mera miragem
Ainda um mistério
Pra onde se vai
Algum paraíso
Ou um céu etéreo
VIAGEM RÁPIDA
Viver a viagem
Há sempre uma alma
Pedindo passagem
No trilho ou na margem
Por dentro dos olhos
E da paisagem
Andar sem destinos
Percorrer caminhos
Correr cem destinos
No trem coletivo
De vagões lotados
Viver sem motivo
É obrigatória
Última descida
Dessa trajetória
Deixar a bagagem
E seguir em frente
Em nova viagem
COSMOS SIDERAL
No vasto universo
Galáxias distantes
Rutilam no cosmos
No espaço sidéreo
Mil sóis e estrelas
Entre buraco-negros
Origens do mundo
No vácuo do céu
Milhões de planetas
Cometas silentes
Que passam velozes
Em noites escuras
Revelem agora
Qual é o papel
No teatro cósmico
De quem agora
Em seu silêncio
Lê estas linhas
EXISTENCIALÍSSIMO
Brevíssimo existir:
Para uns é um deleite
É o ‘jardim das delícias’
O fruir de um banquete
Efêmero existir:
Para alguns um martírio
Uma perene angústia
Um contínuo delírio
Transitório existir:
Sem sabermos ‘o que somos’
‘De onde foi que viemos’
E nem ‘para onde vamos’
TEARES E ARTES
Tece a máquina na fábrica
E fabrica em desatino
Esse homem que maquina
A sina de seu destino
Essa sina se costura
Na malha em lida diária
Estampa a tinta na pele
Em cores do não e do nada
Turnos e ritmos contínuos
Os homens a labutar
Urdem o verbo na trama
Em sua luta no tear
Essas vidas por um fio
Tecem fios de algodão
Muito pedem nada ganham
Porém sempre algo dão
A MÁSCARA NO TEATRO
Atrás do enigma do rosto
Na máscara teatral
As pupilas se dilatam
Em olhares rutilantes
No palco um ato e um pacto
O drama que vem da voz
Em bocas dentes e línguas
Jogam letras na plateia
Nesse rosto mascarado
Há olhos que dizem muito
E vozes que dizem tudo
Fim da cena cai o pano
Cai a máscara do rosto
Que se mostra noutra máscara
ESTÁ POSTA A MESA
Só desconfiança
Nenhuma certeza
Talvez as formigas
Em sua leveza
Devorem cigarras
Roendo de inveja
A MOR(TE(MPO)
Queimar todas as agendas
Pois o amor ruge carmim
Acabar com os relógios
Já que o tempo urge enfim
Rasgar também calendários
Que a morte surge no fim
BAR DOS BARDOS
De repente um verso
Que fale de ardores
De grandes amores
Meia-noite e meia
De repente um brinde
Na falta de absinto
Serve um vinho tinto
À luz da lua cheia
DEVIRES
O devir é só um verso
Que ainda não foi dito
E com estas palavrinhas
Hoje bastam estas linhas
Como se fossem um grito
INDO E VINDO
Querer ir e vir
É do dia a dia
Faz parte da lida
Fases da jornada
Pedras no caminho
Ruas sem saída
De vento em pipa
Seguindo em frente
Na vinda ou na ida
TUM-TUM-TUM
Há momentos nessa vida
Em que muda nossa sorte
Há alguém que quando chega
O peito bate mais forte
Tudo começa no olhar
Termina na petit mort
KINO MATINÊ
Um bom filme no cinema
Tem coca e tem pipoca
Tem começo meio e fim
E os beijos de um casal
Sem seguir algum roteiro
Sequer olham para a tela
No filme também na vida
Hoje aquela sessão teve
Mais de um final feliz
MERCÚRIO COM ENXOFRE
Em crise existencial
Há crisálida e crisol
E certas pedras de gelo
Podem queimar mais que o Sol
Transmutar chumbo em ouro
Na pedra filosofal
É lume que vem de dentro
Fogo interno e metal
Das trevas nasce a luz
E da noite surge o dia
Da arte nasce a obra
Na alma nasce a magia
PARAQUEDAS PARA QUÊ?
Apenas um salto
Um ponto no azul
Mergulha ao sul
Ao léu lá do alto
Um corpo voando
Amigo do vento
Que sopra o alento
Das asas dos anjos
Todo o horizonte
De um mundo pequeno
Tão perto tão pleno
Num hoje tão ontem
O voo se finda
Apesar de breve
A alma é tão leve
Que voa ainda
LINHAS NA PALMA DA MÃO
Ardem perenes eternas
As tempestades solares
Nas viagens dos cometas
Incertezas do destino
Na abóbada celeste
Estrelas iridescentes
Em longínquos quadrantes
Caminhos da Via-Láctea
Oscilam tantas galáxias
E sutis mundos etéreos
Entre pulsares distantes
E asteroides solitários
Há os planetas fugazes
Na dança celestial
Onde rutilam estrelas
Luzindo sóis e quasares
Nas linhas rubras da mão
As cálidas labaredas
Crepitando tão voláteis
Sangue que pulsa nas veias
Ígneas vias do destino
Rios na palma da mão
Em percursos sinuosos
Como sinas de cometas
VISITA-GUIADA NA ESTRANHA EXPOSIÇÃO
DE FOTOGRAFIAS SURREALISTAS
DO MISTERIOSO CALIXTO ARROXELAS
Primeira fotografia:
Há uma esfinge estática
Em rija pose arquetípica
Com seu olhar metafísico
E um semblante enigmático
Tão mágico quanto místico
Segunda fotografia:
Consta um mago demiurgo
Dois sóis nascem em seus olhos
E os relâmpagos da língua
Em mantras de trovoadas
Ribombam na paisagem
Terceira fotografia:
Miríades indeléveis
De roxas serpes aladas
Dançam sinuosamente
Nas centelhas inefáveis
Que fulgem de totens de luz
Na quarta fotografia:
O mapa de um labirinto
De tulipas violetas
Rutilando crepitante
Em sublime sinfonia
Numa pele virginal
Na quinta fotografia:
Um par de musas diáfanas
Banha-se languidamente
No rubro magma vulcânico
Em mil êxtases de eflúvios
Quase sacros tão profanos
Na sexta fotografia:
Um pássaro violáceo
Em seu voo circundante
Sobre o povo em cortejo
E oráculos de epifanias
Bendizendo alumbramentos
Sétima fotografia:
De uma romã aberta
Afluem rios de neon
Cujas águas purpúreas
Seguem no rumo do céu
Um horizonte infinito
VER OS OLHOS DE QUEM VÊ
A pintora Deia Brêtas
Nunca se considerou
Artista surrealista
Embora de vez em quando
Deste rebuscado epíteto
Ela fosse referida
Dizia-se só pintora
De óleos sobre tela
E assim o atelier
Viu a artista iniciar
A preparação das tintas
Para mais um de seus quadros
Misturou bem os pigmentos
Em alquimia cromática
E belas tonalidades
Para cores terciárias
Que teriam a função
De plasmar no alto do quadro
Sol e céu em tom cerúleo
Mas as cerdas dos pincéis
Feitos de pelos de marta
Lambuzaram-se na tinta
Deslizaram pela tela
Criando nessa paisagem
Mil montanhas de cristais
Sobre a tela de algodão
Em pleno terceiro plano
Arquiteturas oníricas
De uma alegre cidade
Que lembrava um grande circo
Ou parque de diversões
Essa paleta de cores
Que deu vida à pintura
Parecia com mandalas
Lá dos monges tibetanos
Mas houve quem visse nisso
Ter a ver com cogumelos
Na composição da imagem
Havia em segundo plano
Uma divertida festa
Na praça desse lugar
Com muitas danças e jogos
Diversão de toda gente
E as pinceladas mostravam
Agora em primeiro plano
Cem casais enamorados
Beijavam-se apaixonados
Em cenas ruborizantes
Aos olhares mais pudicos
Na textura da pintura
Brilhavam tantos detalhes
No cruzamento das linhas
Nos matizes e nuances
Até o ponto de fuga
Se mudava de lugar
No dia da exposição
Essa obra tão diferente
Dividiu opiniões
Era um quadro realista
Opinava um marchand
Ao examinar a tela
Eis uma obra naïve
Comentou um curador
Ao passo que um galerista
Disse ser de arte abstrata
Já que ninguém concordava
Na obra que estavam vendo
E viam de tudo um pouco
Anjos fadas e demônios
Dez tribos de hotentotes
Ou pares de nudibrânquios
Rios de lava escarlates
Ou borboletas monarcas
E a artista em silêncio
Parecia a Monalisa
Ela sorria por dentro
Com tantas opiniões
Sobre a obra tão polêmica
Na noite do vernissage
Mas um humilde garçom
Sem nada entender de arte
Mirou fixamente o quadro
E sendo apenas sincero
Disse-lhe ao servir um vinho:
- Parabéns por seu retrato!
TRAVESSIA DA NOITE ESCURA
Vivemos dias obscuros
Longas noites de negror
Sem linhas do horizonte
Nem um lume nessa senda
Para guiar nossos passos
A utopia muda o mundo
Abre caminhos ao novo
E aumenta a fé na vida
Bússola que aponta o norte
No percurso da jornada
Mas no breu da noite negra
Já se vê na madrugada
Seus cometas viajantes
Que nos trazem seu alento
No ouro da aurora nascente
AGOSTO À CONTRAGOSTO
O tempo risca na face
O preço de um certo imposto
Pois lento dá outro susto
Ao nascer mais este agosto
Sina de vasto destino
E visto o que está posto
Este viver tão sucinto
Por vezes à contragosto
Dias semanas e meses
Somam em si um desgosto
No raso espaço do espelho
Os anos traçam seu rosto
CIDADES ATRAVESSADAS
Uma travessia pela cidade
Que aos poucos nos atravessa também
Os meios-fios nas beiras das calçadas
As contínuas fiações dos postes
As solitárias fontes das praças
Os bancos azuis das linhas de ônibus
As estátuas equestres dos parques
As desbotadas plaquetas de trânsito
Aos poucos eriçando nossos pelos
As luzes difusas dos restaurantes
Os imensos balcões das lanchonetes
As bancadas da quitanda na feira
As toalhas das mesas nos cafés
As portinholas estreitas dos bares
Os carrinhos de lanches das esquinas
Aos poucos irritando nossa pele
Os corredores nus das corretoras
Os armários retos dos escritórios
As mesas de madeira dos cartórios
As estantes dos almoxarifados
Os quadros de chaves das portarias
Os duros guichês dos departamentos
Aos poucos fendem nossa carne
As largas portas abertas das lojas
As grandes entradas dos portos
Os depósitos cheios das alfândegas
Os setores e seus departamentos
As salas dos centros comerciais
As placas dos estabelecimentos
Aos poucos vêm cortando nossos nervos
Os frios meandros das prefeituras
Os gabinetes dos vereadores
As secretarias municipais
Os estranhos fóruns dos tribunais
As paredes lisas das embaixadas
As alas vigiadas dos consulados
Aos poucos fazem ferver nosso sangue
Os caixas eletrônicos dos bancos
As mobílias das casas de empréstimos
Os crucifixos das casas lotéricas
Os banheiros das financiadoras
Os protocolos das casas de câmbio
As câmeras da bolsa de valores
Aos poucos vão ferindo nossa carne
As cercas elétricas dos presídios
Os elevadores dos edifícios
As velhas cancelas dos prédios públicos
Os cercados ao redor dos palácios
Os altos andaimes das construções
As guaritas nas universidades
Aos poucos penetram em nossos ossos
Falta pouco para que tudo isso
Comece a adentrar também nossa alma
ECONOMIZE-ME
Não vai fazer diferença
A depreciação do câmbio
Pelo superávit primário
Nem a fuga de dólares
Com o boom das commodities
Ou o investimento flutuante
Em derivativos de debêntures
Para a catadora de sururu
Lá no mangue lamacento
Que amamenta sua criança
Quando baixa a maré
Não vai fazer diferença
A orçamentação cambial
Dos ativos de alta liquidez
Nem a alíquota dos lucros
Pelas tarifas alfandegárias
Ou a insolvência desvinculada
Da receita da união
Para o cortador de cana
Que morre de exaustão
Antes de completar
Seus trinta e cinco anos
Não vai fazer diferença
A regulação patrimonial
Na desmobilização de risco
Nem a matriz econômica
Pela desvalorização indexada
Ou a rentabilidade da plutocracia
Com a balança comercial
Para o garoto desmilinguido
Que não vai mais à aula
E como flanelinha
Ganha o pão de cada dia
Não vai fazer diferença
A debacle da renúncia fiscal
Nos organismos multilaterais
Nem o colapso rentista
Via títulos pré-fixado
Ou o imperativo da capitalização
Pelo oportuno swap cambial
Para o velho coletador
De materiais recicláveis
Imerso nos imundos monturos
Do depósito de lixo municipal
Não vai fazer diferença
O novo cálculo atuarial
E seu déficit insolvente
Nem a revogação tributária
Pelo pacto da taxa Selic
Ou o tripé macroeconômico
No epicentro do capitalismo
Para as meninas esfomeadas
Oriundas da periferia
Que furtivamente colhem restos
Na xepa do final da feira
Não vai fazer diferença
PARADOXO DIGITAL
Hoje ninguém mais duvida
Dessa ávida ciência
Visceral transcendência
A sentenciar a vida
Somos povos hodiernos
Humanoides em viagem
Rumo ao inevitável
Cataclismo pós-moderno
Eis que descemos das árvores
Em volúveis mutações
Para subirmos ao cosmos
Tão voláteis astronautas
Nova era e velho níquel
Guerra santa em quimeras
Ou equações cibernéticas
Com seus ídolos de pixel
Porém ninguém elimina
Nas memórias de silício
No jardim das hecatombes
A rosa de Hiroshima
Neurônios elementais
Entre lumes de sinapses
Emanam em eflúvios
Sons de mantras ancestrais
Paradoxo digital
Em chips de bits e kbytes
Entre códigos binários
Ficção existencial
Os sambaquis nucleares
Ou esquifes virtuais
Nem hologramas rupestres
Jamais irão deletar
Do arco a mira no alvo
Ou na corda o som da lira
Nem sangue vivo na veia
Ou da musa o sopro em verso
Da via a trilha da senda
Ou do mapa o rumo norte
Nem a cor na íris do olho
Ou o som do vento sul
Pois robôs criptografados
Nem os vis computadores
Tem a senha da alma
Ou a luz de nossos sonhos
Cap. III
OESTE
“O sentimento, quando nobre e raro,
veste tudo de cândida poesia”
Cruz e Souza
ASTROLÁBIO ONLINE
Um fugaz desígnio
Traduz cartas náuticas
Lúdica odisseia
Em vorazes insígnias
De mapas e bússolas
Por mares remotos
Nos rumos do mundo
Noutros horizontes
Achar a si mesmo
ODE AOS ESCRIBAS
Labuta o escriba
Nas vozes antigas
Símbolos e signos
Talha uma epopeia
E veste de letras
Papiros e tábuas
Os nomes de bardos
Nas sendas do mundo
Nas fendas do tempo
PLÊIADES DISTANTES
Um risco na noite
Viaja veloz
Na abóbada anil
Além das galáxias
Depois do universo
E depois de um verso
Azul nebulosa
Tão longe de tudo
Tão perto daqui
UM VORTEX FÚCSIA
Negra pedra ônix
Alta madrugada
Rutila um quasar
Num vórtex volátil
Reluz em relâmpago
Em raio magenta
É quase alvorada
Um róseo horizonte
Já trama a aurora
TESE E ANTÍTESE
O porvir ninguém atina
E morrer é mero mito
Num existir tão sucinto
O devir não vaticina
Este viver tão aflito
Que logo será extinto
Mas a saga não termina
É um caminho infinito
Num eterno labirinto
FOGO DE OLHO-FÁTUO
Crepita sutil
A chama volátil
Em fogo volúvel
Lilás violeta
Labareda tênue
Espalha centelhas
De efêmero lume
A dança em chamas
De luz inflamável
ELEGIA EM MI
Lençóis nacarados
Olor de jasmim
Penumbra diáfana
Um sax soa ao longe
E um vinho merlot
Acorda a língua
A noite revela
Vorazes sentidos
Dois sóis em eclipse
SEM SER ZEN
Volutas de incenso
Ecoa um koan
Ao sol do oriente
Nanquim cor da noite
Desliza o pincel
Pelo ideograma
Cintila um metal
Ao lume da lâmina
Sonha o samurai
SIGNOS E DESÍGNIOS
Na noite diáfana
Inflama-se a chama
Na cor do crepúsculo
Um cálido fogo
De tépido lume
E luz crepitante
Aquece em segredo
Um sonho inefável
De auroras de ouro
SETAS DE CENTAUROS
Som de tempestades
Na constelação
Do céu no Zodíaco
Nem chuva nem raios
Sequer meteoros
Ou lunar eclipse
Apenas centauros
Que miram pro alto
Alvejando estrelas
ALJAVA DE QUIRON
O nobre centauro
Escolhe uma flecha
E aponta a ponta
Os céus se agitaram
Pois qualquer estrela
Se torna um alvo
E a meta da seta
No fim da viagem
Acerta o destino
OLHAR SIMULTÂNEO
Impar dorme o par
Sonha um com o outro
No sono feérico
Calores oníricos
Por dentro do corpo
Um frisson na pele
E ambos acordam
A carne na carne
Acorda o desejo
Cap. IV
NORTE
“A poesia não quer adeptos,
quer amantes”
Federico Garcia Lorca
DESPE(R)DIDA
I
Um romance chega ao fim
Momento de despedida
Hora de dizer adeus
Era eterno e se acabou
Nada será como antes
Até breve e até sempre
Que sejas muito feliz
II
Um corpo se distancia
Indo embora pra bem longe
Mas as letras do seu nome
Ardem na ponta da língua
Néctar de raros perfumes
Ido na brisa do tempo
Vindo no vento do agora
III
A lua na madrugada
Espiava esse amor
Invejava aqueles beijos
Calor na pele afagada
Toque sutil de ternura
E na líquida volúpia
Dois corpos estremeciam
IV
E nos albores da aurora
Quando ambos despertavam
E os seus olhos se abriam
Ao mesmo tempo também
A luz do sol descobria
Esse casal que se amava
Na rosa branca do dia
V
Havia um nome na linha
Na clara palma da mão
Um nome dentro das veias
Impregnou-se nas artérias
A jorrar letras no sangue
Tatuagem na alma nua
Granada dentro do peito
VI
A retina iluminou-se
Luz na íris dos seus olhos
Em cada linha do corpo
Em cada traço do rosto
De inefável silhueta
Em sinuosa escultura
Repousada nos lençóis
VII
Fino sussurro nos lábios
O som da palavra sim
Desde o primeiro instante
Um hálito de promessas
E a certeza deste amor
As cores e luzes na aura
Sabem disso muito bem
VIII
Voar e flanar no voo
Estar mais perto do sol
Quase tocar as estrelas
Sentir a brisa na bruma
E estar dentro da nuvem
Estar dentro de um abraço
Arrepio na epiderme
IX
Todo dia era de ouro
Manhã nívea no jardim
O que já foi partitura
E promessa de canção
O acalento mais cálido
Entre cifras com acordes
Melodia veio a ser
X
Era como um raio de sol
Num peito de iceberg
Era o sal do oceano
A brisa que sopra a vela
No barco azul do destino
Onda na beira da praia
E a espuma na areia
XI
Seda de toque suave
Tecida em fios de sonhos
Desenho de muitas flores
Bordados na tela nua
A agulha do desejo
Costurou os dois tecidos
Com as linhas mais sublimes
XII
Mas mesmo a primavera
Deixa um dia o jardim
Uma borboleta azul
Embriagou-se no néctar
A borboleta azulada
Voou numa tarde cinza
Para além do horizonte
XIII
A mesma lua diáfana
Lembra na noite crescente
O olho de uma pantera
Que observa lá do céu
Com seu olho luminoso
Que vigia a solitude
Testemunha essa ausência
XIV
Um ramalhete singelo
De flores inesperadas
Que trazem em duas pétalas
Fragrâncias da saudade
Com olores da lembrança
Que perfumam a memória
Com o néctar desse afeto
XV
Afeto afeito em afagos
Carinho aceso em carícias
E tempestades solares
Fervendo o rio do sangue
E o nome dentro das veias
Que pulsa lava fervente
Em arrepios pela pele
XVI
Quase todas as histórias
Desejam ter um final
Assim cessa essa escrita
Uma página da vida
Foi perdida para sempre
Na noite da despedida
Um romance chega ao fim
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