À cor do chão

Eu podia lhe dizer à experiência dos velhos
Mas prefiro, nesse sol, o olhar menino.
À santa juventude que me envaidasse
E faz sangrar no peito este amor mendigo.

O coração submerso qual a leve bóia
A flutuar ao sabor das correntezas
Por sobre espinhos, dentes de jibóia.
Não lhe direi do passado suas tristezas.

Que a infância no tempo deixa, eu podia lhe dizer,
Resquícios de pureza bruta
Quais alísios ventos ao amanhecer
A abaloar-se o corpo na funda gruta

Eu podia lhe dizer do amor que tive, maravilhas mil.
Mas inútil seria para quem o céu pretende alcançar
Melhor o livro aberto do que a experiência vil
Se ao mundo inteiro o amor pretende espalhar.

Eu podia lhe dizer da sensação de mergulhar
No labirinto do amor que a vida adora.
Amar o belo e o feio com desdenha desprezar
E do cantar dos anjos ao romper da aurora.

Eu podia lhe dizer o que aprendi nos livros
Mas a necessidade de sobreviver me fere a alma
Corta-me mais que um dedo e me tira a calma
Preciso ir à luta atender a ganância dos vivos.

Eu podia lhe mostrar as coordenadas do horizonte
Mas a necessidade de saciar a fome de cada dia
Aperreia-me, maltrata-me e tortura-me desde ontem.
E acaba de ferir o papel a ponta da caneta vazia.

Eu podia lhe dizer do grande amor que tive
Mas não o simples significado do sentir.
Do desempregado que vaga no trem noturno
E do bêbado que amanhece sob as marquises.

Mas eu podia em fim, lhe dizer de coração estático.
Para amar somente o certo e caminhar de pé no chão
Amar-te qual Deus um pobre fanático, mas escasso
É meu tempo e dispersa é a minha atenção.
R J Cardoso
Enviado por R J Cardoso em 30/01/2009
Reeditado em 31/01/2009
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