VIDA ESCOLAR DE UM FAMIGERADO ESTUDANTE (AUTO-BIOGRÁFICO "CONVERSAS COM MACAÚBAS")

CAPÍTULO VI

1958 / 1962

Sempre detestei estudar por obrigação. Desde cedo freqüentei escolas tidas por minha mãe como excelentes, a exemplo do Colégio São Bento e o Ginásio Estadual Severino Vieira. Meus irmãos do sexo masculino estudaram e até brilharam nesses dois colégios. E em assim não sendo, só pra contrariar, ninguém mais que eu, troquei tanto de escola.

Aprendíamos as primeiras letras e números em casa, com minha mãe. Ela sabia muito, mas não sabia ensinar, não tinha método, que dirá paciência. Era aos gritos e porradas, afora os castigos, após as avaliações. Íamos para a escola no 4º ano primário, antes disso, era em casa e na hora de freqüentar escola, fazíamos um teste de acordo com a idade e o conhecimento e entrávamos direto numa série avançada. Eu fiz um teste no São Bento, fui classificado para fazer o 4º ano, mas não tinha idade e tive que cursar o 3º. Foi em 1958 e eu só tinha 10 anos.

Abominava o tal Colégio São Bento, os professores, padres. A única coisa que eu gostava era o dia de 5ª feira à tarde, porque era dia de baba. Cheguei a compor uma paródia de uma marchinha carnavalesca para festejar o meu dia do futebol. Era assim:

Tem baba

Tem baba

Tem baba, quinta-feira,

eu sei que não agüento

com a bola na chuteira. (bis)

Eu sei que não agüento com a bola na chuteira,

por isso estou no banco-de-reserva, de bobeira,

mas se o professor me escalar, na quinta-feira,

eu sei que engulo um frango e sou chamado de peneira...

É que eu era goleiro, a posição que dava início a quem não sabia lidar com a gorduchinha nos pés, fazer firulas, driblar, passar, fazer gol. Eu sempre fui péssimo na linha. Resultado: o mundo futebolístico perdeu um excelente perna-de-pau enquanto o literário e artístico, ganhou um razoável poeta. Desde então demonstrava uma facilidade para tal.

Naquele tempo, havia o exame de admissão ao ginásio e tão logo conclui a 4ª série, prestei o tal exame para o Ginásio Estadual Severino Vieira, mas impertinente, ou melhor, cheio de personalidade como sempre fui, de propósito, num ditado cujo texto era demasiadamente conhecido, entre 40 vocábulos, errei 28 palavras, ou seja: 70% da prova. Eu nunca aceitei qualquer tipo de imposição. Resultado, quando prestei novo exame, de 2ª época no Ginásio Estadual Góes Calmon, no bairro de Brotas, eu obtive o êxito do 2º lugar (o 1º lugar conquistado por uma garota mais preparada e estudiosa do que eu, filha da diretora do colégio), mas dei prova ali, do meu preparo. Afinal, eu havia feito o lastro em casa à base de puro pau e castigo e fiz banca para a tal admissão com uma professora chamada Cecília, cheia de métodos novos que faziam a gente aprender com facilidade e com alegria. Ela era muita divertida e chorava de tanto rir com as traquinagens minhas e de um primo meu, chamado Anísio Neto, que era cem vezes pior do que eu para estudar.

No Góes Calmon eu me encontrei. Nunca vi professores e colegas, tão legais. Aprendi muito na 1ª série ginasial, sobretudo, na questão das amizades, nas relações humanas e na iniciação às artes. Pela primeira vez consegui passar de ano sem fazer recuperação de várias matérias, ao contrário, passei direto sem provas finais. Descobri confirmando que quem deve escolher sua própria escola, é o aluno. Mas, minha mãe, de quem eu herdei o gênio, para me contrariar pegou a minha transferência do Góes Calmon e matriculou-me na 2ª série do Severino Vieira. Aí, de pirraça, perdi a 2ª série e mesmo repetente, ainda fiquei na 2ª época de matemática. No momento que teria de mostrar o boletim de fim de ano, resolvi fugir de casa, indo passar uns dias com o meu avô materno, Anísio Sabino Loureiro, que me deu a cobertura necessária, e, ainda pagou o reforço escolar. Só assim consegui passar para a 3ª série.

Em 1962, fui estudar em Jequié no Instituto Educacional Regis Pacheco, curtindo a minha tristeza e a saudade dos amigos da Barra, de Ivanise, vizinha e companheira de retorno da escola pra casa numa Kombi de Lev Smarcevski, dirigida por Constantino, um mulato simpático. O pai de Ivanise, arquiteto, artista plástico, piloto de corridas automobilísticas e navegador náutico. Que família interessante: D. Quinquinhas, a mãe, Ivan e Ivana, os irmãos.

Eu nutria uma paixão underground pelos olhos castanhos, cabelos cacheados e corpinho delicado da bela Nise. Em Jequié, confabulava com a lua, toda noite, perguntando o por que de ter sido arrancado de Salvador sem ter tido escolha?

No I.E.R.P., eu estudava a noite, já que trabalhava de dia como office-boy num Cartório de Registro de Imóveis de um senhor chamado Humberto Madalena Biondi. A energia elétrica da cidade já era administrada pela COELBA e era à base de gerador a óleo diesel. Faltava luz sempre e isso impedia a normalidade das aulas, isso também me facilitou a concluir por uma espécie de decreto consensual dos professores, a 3ª série. Na época, fazia sucesso uma música chamada Poema, que inspirou uma paródia popular que criticava a administração da COELBA e que parcialmente era mais ou menos assim:

Originalmente: “Poema, é a noite escura de amargura... poema, é a luz que brilha lá no céu...”

Versão: Coelba, é a noite escura de amargura, Coelba, é se pagar e não ter luz...

Originalmente: “Poema é ter saudade de alguém, que a gente ama e que não vem...”

Versão: Coelba, é manobrada por alguém, que pede óleo e que não vem...

Originalmente: “Poema é o cantar de um passarinho, que vive ao léu perdeu seu ninho, é a esperança de voltar...”

Versão: Coelba é o estudante em desatino, sem estudar sem ter destino é energia pra faltar...

Originalmente: “Poema, é um cantor em serenata... olhando a chuva na calçada, querendo lua namorar...”

Versão: Coelba, conta de luz para ser paga, pra todo mês não ser cortada e a escuridão a atormentar...

Se eu que já não era muito chegado aos estudos obrigatórios, comecei a gostar daquela situação de falta de luz que fazia nos tirar da sala de aula tendo quase que ser aprovados, no meu caso, da 3ª para a 4ª série ginasial, não diria por decreto, mas fazendo com que o sistema obrigasse os professores a facilitarem as nossas vidas estudantis. Aí, se iniciou o meu caso de amor por Jequié.

1962, tempo de eleição para o governo do estado e os dois principais candidatos eram Lomanto Júnior, jequieense, ex-prefeito local, bom administrador, então presidente da Associação Brasileira dos Municípios, municipalista, portanto, de quatro costados e Waldir Pires, esse mesmo de agora, que também chegou a governador do estado e é atual ministro do governo petista de Lula. Jequié era 98% fechada em torno do nome de Lomanto. Houve um comício em prol da candidatura de Waldir e eu apesar dos 14 anos de idade, mas já inconformado com as injustiças sociais e com a corrupção que sempre campearam no nosso país, achei e com muita personalidade, de ficar do lado mais fraco, contra tudo e contra quase todos na cidade e apesar das notícias que alardeavam de que a comitiva do candidato oposicionista seria escorraçada a vaias, pedras, tomates, ovos. Achei de ir ao tal comício chegando a subir no palanque e a ser também apedrejado, ‘atomatado’ e ‘ovo-acionado!’ Não deixei por menos e colaborei poeticamente como co-autor de uma outra paródia em cima do hino dos lomantistas, cujas letras, original e da versão eram mais ou menos assim:

Originalmente: “Lomanto, esperança do povo...”

Versão: Lomanto é a desgraça do povo...

Originalmente: “É gente nova, é sangue novo...”

Versão: Que joga pedra, tomate e ovo...

Originalmente: “Lomanto é a revolução...”

Versão: Lomanto é a decepção...

Originalmente: “Veio do alto sertão!...”

Versão: Que vem do alto sertão...

Originalmente: “Municipalista, filho de agricultor...”

Versão: É pecuarista, filho de espertalhão...

Originalmente: “É o amigo do pobre...”

Versão: É inimigo do pobre...

Originalmente: “Irmão do trabalhador!...”

Versão: Irmão de todo ladrão!...

Jequié, para onde eu detestei um dia estar seguindo naquela viagem tristonha desde Salvador com a mente repleta de reminiscências que pareciam não ter fim. Jequié, o lugar que de repente me devolveu prolongando, o paraíso perdido anteriormente que foi Amargosa. Como eu fui feliz e ainda sou quando vou à cidade ensolarada. Ali, aprendi o sentido da verdadeira amizade, a partir dos personagens que fui debulhando na medida em que fui conhecendo: Bené, Luiza, Nelma, Izam, Raimundão, Ednilson, as namoradas da vez, de cada vez: Beth, Verônica, Joana Angélica e A.M.A.R., sigla de Adelina Maria Abade Rebouças, aquela beleza completamente diferente num exotismo peculiar: morena, pequenina no seu jeito de grande ser, o sinal de nascença, nos grossos apetitosos lábios que me deram o primeiro beijo na boca na sessão de cinema do Cine Jequié e me fez sair da matinê pisando nas nuvens. Eu não queria nunca mais limpar os lábios, sequer passar as mãos para perenizá-los na lembrança. Saudade de momentos que ficaram eternos, arraigados na memória. Biina, como eu a chamava, tinha alma completa de artista, o era, por dentro e por fora, pois cantava, tocava piano e violão, gostava de poesias. Formou-se médica-cirurgiã-plástica, confirmando sua verve de artista a esculpir rostos humanos, melhorando-os na aparência. Foi brutalmente assassinada tempos depois. Destino estúpido para uma criatura tão meiga, tão doce. Para ela, eu compus versos sempre, mesmo sem tê-los composto diretamente para ela, haja vista a realidade do momento, mas faria pra ela como fiz “Partituras” para Vera, o incomparável imenso amor de toda a minha vida, tanto tempo após, 2006, uma poesia e música fantástica em parceria com Antony Figo e já que revelo isso assim destarte, a coloco aqui compartilhando com os meus leitores, assim:

Partituras

rupturas estruturais,

vidas partidas,

frágeis figuras,

almas perdidas

noites obscuras

condicionais...

composições,

melodias, poesias,

harmonias em vão,

retalhos de rotos retratos,

destroços de amores

em uma canção

mil beijos e abraços

jogados no mato...

mil beijos e abraços

jogados no mato...

e a vida é a arte de

engolir partituras

partir tanta amargura

desatar tantos nós

nos encontros águas

pororocas das mágoas

neste mundo atroz!

Partituras para mim, não é apenas a grafia de partes vocais e instrumentais numa composição musical para o registro e a leitura simultânea no ato de sua execução pelo músico pleno, mas é também, pela sua fonética, a sugestão de rompimentos ou algo que se quebrou propiciando sofrimentos dilacerados, que a vida se incumbe de provocar, ou ainda, uma vida que se partiu como a dela.

Por ela eu cantei, e, vez em quando canto, aquela música profética de Jobim, emprestando a poesia de Vinícius e que se chama “Esquecendo Você”.

Eu vou ter que passar minha vida cantando uma só canção

Eu vou ter que aprender a viver sozinho na solidão

Eu vou ter que lembrar tantas vezes o riso dos olhos teus

Eu vou ter que passar minha vida tentando esquecer esse adeus

Eu vou ter que esquecer teu sorriso e o pranto dos olhos meus

Eu vou ter que esquecer teu olhar na hora do adeus

Eu vou ter que esquecer minha vida

Só você não percebe porque

Eu vou ter que passar minha vida esquecendo você

Ela deixou um legado com essa música que ainda hoje, se a escuto, não consigo cantar um verso sequer sem ficar embotado pelo sentimento da irreparável perda naquele momento de um namoro que não teve que dar certo e muito tempo depois pela sua trágica morte, assassinada. As cordas vocais desobedecem meu desejo de me fazer vibrar entoando a melodia dessas canções e a represa dos meus olhos inunda e arrebenta provocando uma verdadeira pororoca por dentro e para fora de mim.

Enfim,

Jequié,

minha cidade

amante amada,

cheia de sol,

onde os primeiros

maus traçados versos

em confusão mental

sem motivo de ser,

e de quê, com ou sem porquê, assentei

num papel desbotado

achado num canto de quarto

a 1/4 de hora pras 3 da matina

no extinto City Hotel,

rabisquei como bala um embalo embalado embolado

pra gente brincar todo mês...

todo mês de janeiro,

freve frevo fevereiro

e até março, abril

pra brincar este ano,

pular para o ano

e até muito depois dos anos 2.000...

Em 2003, ano do assassinato de John Fitzgerald Kennedy, o presidente democrata americano, por ordem de minha mãe - sempre ela, retornei a Salvador e teria de me matricular na 4ª série do Severino Vieira, mas ela caiu na bobagem de confiar em me entregar a "transferência" e confiou também de eu próprio me matricular, aí eu não contei dois tempos, corri pro Góes Calmon e "escondido" me inscrevi na 4ª série ginasial tendo de passar o ano inteiro saindo de casa com o escudo do Severino (era grudado por pressão) e no caminho trocava pelo do Góes Calmon. Comigo ninguém pode! Até que, tendo concluído o ginásio com todo o brilhantismo, ousei confessar toda a verdade, mas sem deixar de mostrar a ela que o meu sucesso se devia a estar mais uma vez fezendo responsavelemente as minhas vontades, os meus gostos e não os dela. Aprendi muito com minha mãe, mas acho que ela também aprendeu muito, mas muito mais comigo!

Antonio Fernando Peltier
Enviado por Antonio Fernando Peltier em 19/01/2009
Reeditado em 20/01/2009
Código do texto: T1393898
Classificação de conteúdo: seguro