CONTAGEM REGRESSIVA

CONTAGEM REGRESSIVA

Dez... O eco milenar de um tiro ouviu-se.

Tombou um homem como império que ruísse

e a contagem regressiva principia:

como se naquele instante de enfático silêncio

doesse mais a fome negra de Biafra

que, sem vacas pra adorar, há milênios já doía.

Um tiro se repete e em nós a História se repete cada dia.

O vírus do conflito a espécie perpetua

e em cada cérebro pressente uma guerra gradativa

à medida que a contagem regressiva continua...

Nove... O lavrador aguarda a safra sem convicção.

O poeta e o poema continuam mais herméticos.

Os patéticos sorrisos não traduzem sua origem.

A liberdade ferida pelo vício do consentimento

o que faz é construir paredes.

O amor preso em cadeias do diálogo obscuro.

E tudo o que sabemos fazer é omitir: o silêncio

é o tijolo

que acrescentamos sobre o dorso intransponível desse muro.

Oito... Mas nossos filhos saberão de tudo:

a fome não se oculta toda a vida.

Os seios das mulheres de Biafra

irão cobrar seus dias de abundância.

O lavrador reclamará a sua safra.

O amor propalará sua renúncia

e nossos filhos saberão de tudo

porque cada um de nós é uma denúncia...

Sete... Estamos todos sendo expatriados.

Expatriadas as nossas convicções.

Indesejados os filhos de suas mães.

Nós somos deuses levados à guerra.

Semideuses morrendo de fome.

Estamos todos sendo expatriados

transformados em numerosos vietnames.

Seis... É tempo de jogar o último vintém

dos sonhos idos, dos que ainda vêm

e no resto da vida jogar sua riqueza...

Depois a dor pode cobrar seu pranto

cada sonho cobrar seu desencanto

e a tristeza cobrar sua tristeza.

Cinco... Ainda é tempo para amar.

Improvisemos uma primavera

e proclamemos todos nós iguais:

basta de tombar esses impérios

de homens em conflitos raciais.

Quatro... Enquanto estamos à mesa dos famintos

bradando com os negros seu clamor

virão príncipes vestidos de mendigos

suplicar-nos um pouco desse amor.

Três... E os senhores de nossa liberdade

um dia passarão famintos

mas nós estenderemos nossas mãos...

Dois... E os poderosos virão desatinados

matar a fome com o sobejo dos irmãos.

Um... O amor é a neutralização da bomba.

Zero... ?

Afonso Estebanez

(Prêmio “Troféu Casimiro de Abreu” do I Torneio Nacional da Poesia Falada –1968 – Governo do Estado do Rio de Janeiro – Secretaria de Educação e Cultura – Departamento de Difusão Cultural)

Afonso Estebanez
Enviado por Afonso Estebanez em 05/01/2009
Código do texto: T1369382
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