FOGO NOS TRAPOS DO ESPELHO

Um belo dia,

ninguém se lembra bem quando,

acastelou-se a dama de copas,

mulher de nudez escondida,

sempre vestida nas cartas.

Intocada, descuriosa até pela puberdade,

arreava a calcinha em coxa-e-meia

e, com os olhos sempre fechados,

no despudor natural do sangue

guardava a menstruação.

Júlia, de passado que ninguém mais lembra,

passeou comigo em riscos de bicicleta

desafiando os trilhos dos bondes

derrapou na roda da infância.

Júlia, em pânico, na ilusão do sonho absurdo,

dançou comigo e com os hi-fis antigos

desafiando o mocinho do cinema,

censurou as cenas de cama.

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Nem pai, nem mãe, nem namorados ou irmãos

conseguiram ver um pedaço em segredo

do corpo que passou a se esconder

por tanto pudor ao engordar.

Desesperada,

poucos se lembram o quando,

Júlia, depois da festa de formatura,

abandonou namorados, pais e irmãos

largou casa e sozinha foi morar vestida.

Não fez questão de janelas para o mundo.

No Natal, quebrava as nozes com os dentes,

no Carnaval, se empolgava com a solidão da TV,

no São João, bebia a ressaca e dormia sem sono.

Sempre com pouco sabonete

se banhava olhando os pingos do chuveiro,

enquanto ouvia o vinis celestiais

da infância guardada pela ausência

do rosnar em arrepio no braço na vitrola

que arranhou os discos em tão pouco tempo.

Ouvia, dormia e tossia qual cigarra de peito negro

pela fumaça do cigarro comprometendo um coração.

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Um belo dia,

e todos souberam bem que dia foi este,

Júlia abriu um velho álbum de fotos riscadas.

Chorou até perder-se na dimensão das lágrimas.

Resolveu brindar toda a reclusão da adolescência.

Despiu-se no banheiro

sem olhar os pingos do chuveiro

e andou nua por todas as ruas da casa.

Abriu no guarda-roupa

e, ao primeiro nu frontal do espelho,

jogou querosene na chama da imagem.

Em pleno mês de Agosto,

Júlia suicidou sua ausência.

Ninguém mais dela lembrará!