CANTO DE ABRIÇÃO (Folclórico de Folia Reis)

CANTO DE ABRIÇÃO

(Folclórico de Folia Reis)

Tempo haverá em que

o canto ficará

completamente mudo.

A lágrima será como semente

da palavra salgada

que os olhos plantarão

entre os lábios...

Meu senhor dono da casa

escuta prest’atenção

vem abrir as vossas portas

pra esse nobre folião...

Devastarão casa por casa

cada palmo de chão será salgado

arrancarão todas as portas

e janelas dos sentidos

como o corpo num ritual

de sucessivos fluxos menstruais.

Sempre a história se repete

como a fábula inventada

por um rei que tem de tudo

e um povo que não tem nada...

Mas eu atirarei minha canção

no telhado da minha casa

e a chuva arrastará meus versos

pelas calhas esgotos e canais

e os desaguará em mar aberto

como barcos que despertam

na restinga da manhã...

As noites se perderão

para sempre de seus dias

mãos cheias virar-se-ão

sobre o chão das mãos vazias.

Transmitirei meu canto

boca a boca

como flor que germina

pelo olhar.

Espalharei meus barcos no vento

e minhas asas no mar...

No banquete solidário

da miséria consentida

só não morre quem não come

porque a fome é dividida...

Cada grito renascerá

no som do apito de fábrica

cada pranto reprimido

será chuva derramada.

Meu pai se chama João Caco

minha mãe Caca Maria

juntando Caco com Caca

sou filho da cacaria...

De verde as folhas lavadas

nos arbustos das colinas

aos pingos encharcarão

as ramagens de resina...

A sobra que cai de cima

não se bebe nem se come...

Como água não mata a sede

como pão não mata a fome...

Nossa voz terá o calor da luz

no interior de uma choupana

na floresta.

A chuva correrá por claros vales

como fios de lã levados pelo vento.

Os pássaros imigrarão de seus mistérios

e as flores da manhã se regozijarão

como sinos diáfanos de luz

que não se ouvem senão com o coração...

Não quero toda a farinha

somente um pouco do pão

com que vossa mãe Maria

esposou meu pai João...

Os pés dos pequeninos pisarão lá fora

não como as botas que hoje pisam

a relva da esperança

fecundada pelo orvalho...

Eles terão o seu caminho certo

como as reses os sulcos dos campos.

Quem sobreviver verá

em passos desencontrados

o diabo passar no rastro

sob as cinzas dos reisados...

Todos entoaremos

uma canção que não se ouvia mais.

Os olhos verão coisas inacreditáveis...

E os homens se tornarão

mais unidos por amor

como irmãos num só rebanho

pela voz de um só Pastor!

Nosso ódio não tem mais ira.

Andamos de pés trocados

festejando os desmomentos

dos remates acabados...

Meu senhor dono da casa

escuta prest’atenção...

Vem abrir vossa loucura

pro meu canto sem razão.

A. Estebanez

Afonso Estebanez
Enviado por Afonso Estebanez em 04/12/2008
Código do texto: T1319396
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