LIVRO DE VIAGEM OU DO DEPOIMENTO

LIVRO DE VIAGEM OU DO DEPOIMENTO

PRIMEIRO

que tudo aceito a tirania da saudade

que levo como prova de amor envergonhado:

minha gente submetida da América deBaixo

é a puta rendida da América deCima.

As gaivotas negras da paz estão pousadas

nas sombras das pedras machucadas pelo tempo

– a decidir caminhos que vão não sei pra onde

gritando liberdade de não sei o quê.

O que humilha mesmo é essa guerra de muletas

onde a vergonha da derrota nos obriga

a colher restos de louro jogados pelo chão.

Acostumamo-nos a estender as nossas mãos estradas

e os nossos braços trilhos às locomotivas

que colidem todo o dia com o nosso coração.

E vamos passando em nós uma cidadezinha antiga

onde o Rei um dia prometeu passar...

– E não passou!

Não sei onde arranjei essa coragem de dizer

que nossas guerras são de auroras

renascentes na paz do sangue verde matutino

da criança que ainda acordará dentro de nós...

SEGUNDO

a prova do tempo

o irmão cosmoascencionário

não tem ódio nem amor...

Apenas curte a cobiça

do enteu bdélio e formal

– o degas imperador.

Morra a flor, mas guerra é guerra.

Nos bate-bocas da paz

make tecnic of love!

Desde que inventou a fome,

das primas virgens não há

uma só que ele não prove.

Fora, faz praças de sangue

para mostrar na cozinha

aos irmãos que é o mais forte...

No momento da partilha,

se quiser levar a vida

que leve também a morte.

Fraternidade promíscua!

Faz pensar que o beijo seja

a arma com que se apossa...

No entrevero da conquista,

desfralde a sua bandeira...

Mas nunca defraude a nossa!

TERCEIRO

mundo ou planeta

ou cortina de montanhas

onde as mãos que não semeiam

tiram flores das entranhas...

Onde o canto se constringe

com mil facas na garganta

que pra viver em que ouve

precisa matar quem canta.

Ninguém sabe a leite ou mel

estrangeiras ilusões

sob a terra prometida

as sementes dos canhões.

Torne ao chão o que é do chão

cada um tem seu processo

e ninguém condene a falta

quando peca por excesso...

Terras, máquinas, nem sempre

põem coroas em quem vence...

Pelo homem haja quem faça,

não haja nunca quem pense.

A semântica da língua

é reserva do senhor...

– Amados, não sejais mudos,

envenenai-vos de amor!

QUARTO

de família. Odor de gasolina na floresta.

Mulheres cheirando a flor de arroz

chapéus-de-palha na cabeça.

Ah, crianças morrem

porque não sabem que há flores

que são napalms.

Os homens voltam dos pântanos

os alvos dentes camuflados

pelo silêncio premonitório da família.

Quando estiverem todos dormindo

o profundo sono da tragédia

os passarinhos inventarão a guerra...

QUINTO

milênio de paz e mistério

nos alvos vultos de voláteis vestes

onde vem leve o vento flautear.

Na pachemina em sândalo na seda

que vão cantando músicas de vidro

purificando os dedos no tear.

Um rebanho se move lentamente

como um rio tangido pelo canto.

Nos braços da mãe um anjo levita...

Ouvem-se passos de velhos amigos

e tece em silêncio toda a família

o pão de amor com que se comunica.

Sáris brilhantes teares incenso...

Aurora policrômica de um deus

que nos fala como antigo parente.

É o segredo da paz que não sentimos

quando nós sem amor lhe desvendamos

o mistério da fome que não sente.

SEXTO

continente sem amor amado

comprado a peso de ouro

no mercado inflacionário dos brancos.

Os guetos são o sexto sentido

da liberdade currada.

Os mercadores da guerra acreditam

que o amor odiado morre com a morte.

Mas o preço do ódio vendido

é ser vermelho o sangue dos negros...

– Livre, há de querer provar o quanto é forte!

CIRANDA cirandinha

vamos todos cirandar

nossa paz saiu de casa

mas um dia vai ficar...

ou foi dar uma voltinha

para nunca mais voltar...

A. Estebanez

(Prêmio “Troféu Casimiro de Abreu” do III Torneio Nacional da Poesia Falada de 1970 – Governo do Estado do Rio de Janeiro – Secretaria de Educação e Cultura – Departamento de Difusão Cultural. O poema foi cassado sob censura do Departamento de Ordem Política e Social (Polícia Federal) para apresentação pública pela Tv Globo durante a repressão do regime militar instalado no país em 1964, sob os veementes protestos de Cassiano Ricardo, então presidente da Comissão Julgadora do concurso, que nem assim conseguiu passar pela mordaça da censura federal)

Afonso Estebanez
Enviado por Afonso Estebanez em 23/11/2008
Código do texto: T1299862
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