Crônica de um poeta que jaz

Pobre sonhador dos devaneios

Ia além dos sonhos das décadas passadas

Agora jaz em teu passeio

- de passeios faço calçadas!

Houve tempo, em juventude, outrora

Lutou ideais dos mais poéticos

Sangue escorria-lhe à face, e agora

Não há quem devolva-lhe os méritos.

Um bêbado, coitado! – grita, com pena

As velhas do povoado da Lagoa

Viveu os trinta como mil! Blasfêmia!

- Pesa-te à terra, velha! Morta, és boa!

“Gonçalves” – sussurra-lhe a jovem ao ouvido

Vai que tenha apenas adormecido!

Pensas a bela, a qual teve amor por toda a vida

Não correspondeste, por contrário!

Eis que estais arrependida!

O ‘portuga’ da venda que só olha, sorrateiro

E pensa ‘’nem morto, caído ao chão tem paz

só quis ser poeta, o pobre rapaz!

Ah, se soubessem de Bocage, o prisioneiro!”

O sol estava ao meio, inchava-lhe o peito

Nem uma lágrima se viu, apenas dedos à face

Hora de almoço, alguns dão jeito, se vão

E fica o corpo estirado, a quem observasse.

Eis que vem o padre, c’oa batina erguida

- não pode vir poeira, há missa logo mais -

Maldito seja! Apenas um olhar. Esquiva!

Um pai nosso e é tudo. Deixe que peguem o rapaz.

Sem amigos, sem parentes, calado

Morreu como? Não tinha tiro, não tinha marca

Passavam sobre o cadáver, longos passos

Pobretão! Ninguém fazia-lhe a cara.

É tarde do dia, e o corpo ainda estirado

Em plena praça, onde todos passavam

Passos largos, um murmúrio, quase calado

- Poeta, bêbado... vagabundo! – murmuravam.

Cai a tarde e a notícia corre

A cavalo mas como se a luz

Quando um indigente morre

Feliz de quem o corpo conduz.

- Saiam, saiam, fujam logo! – grita alguém

- Como pode essa arrogância com um morto!

Tratar um semelhante com tal desdém

Saiam todos! E já te esqueçam deste moço!

Pois que sei do que se passa!

E ninguém aqui te faz idéia,

que quando um poeta desta pra melhor passa

Ferve em fogo uma platéia

E se ao peito te arregaça

É como furar um colméia

Mas não de abelhas, seus infames!

De cousa que parece não ser de vosso conhecimento

É de amor que há o enxame

De amor, ternura, paixão e lamento!

Sei do corpo que aqui jaz já mal cheiroso

Vi ontem chorar à beira do lago

Chorava de amor que se fez em desgosto

E por isso morreu! Vejo em ti o meu fado...