De tudo que tive, pouco me sobra,
De todas as certezas, nenhuma,
De toda a verdade, alguma,
De tudo que tive, pouco me resta.
Resta-me a fatalidade do tempo escasso,
A vertiginosa aventura da vida,
Escoando,
Fina areia coada,
Pelo gargalo do agora.
Mas tive de tudo sim,
Amálgama do ser!
Tive primaveras magníficas,
Águas claras, pastos imensos,
Bois ruminando a paz,
Pássaros cantando o amor;
Azuis, de todas as gamas,
Azuis profundamente azuis.
Verdes luminosos,
Verde esperança...
Mudança...
Mudança é do que mais tive!
Mudança com tudo estático;
Mudança em mim,
Criança,
Projetos de papel,
Casas de areia.
De tudo que tive, pouco resta.
Resta um resto de areia:
Fina areia coada,
Escorrendo implacável as horas,
Resta as mãos quase vazias de tempo,
Restam pedaços, alguns,
Do muito que perdi pela estrada,
Resta essa cabeça que não pára,
Quando bem poderia ter parado;
Resta um corpo que sente,
Um coração que pulsa,
A repulsa da vida vã.
Resta o olhar que tortura,
Resta o ouvido que não ouvida,
O vivido.
Do muito que tive, me farto!
Do pouco que tenho, me engasgo,
Travo na garganta,
Descompasso,
Grasno, gargalho,
Choro;
Atalho
O sal das lágrimas,
Nem últimas,
Nem primeiras...
Do sonho que tive, parto.
Sem dor, sem mágoas,
Sem choro,
Sem amanhã,
Sem nada!
Ilustração: Paula Baggio
Nanquim Aguada sobre papel Canson
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