TENHO UM DIÁRIO

tenho um diário minúsculo que afinal para nada me serve. sei que se as palavras para ele surgissem, tudo me seria muito mais fácil. ou mais simples. para estar em paz comigo. tudo seria uma razão e um alívio. mas as palavras deixaram de ter significado quando, meu amor, as mutilaste. a todas. falavas, interminavelmente, e eu não mais fazia do que me manter, embevecido, com a língua lembrando o sabor da tua. falavas e eu tentava absorver os sons das palavras, separá-las do seu enlace com as máscaras, isolá-las do seu sentido, enquanto elas, imaculadas, proliferavam na tua boca, com gosto a romãs, como sementes crescendo em terreno adubado. o tempo depois passou muito depressa e fui descobrindo que, afinal, não eras tu quem falava. estavas, sim, a habitar um silêncio magnífico, revestido de luz e de paixão. as palavras apenas existiam na minha cabeça, habituado, como sempre fui, à corrente louca do verbo incansável. o tempo passou muito depressa, repito, até ficar só, neste estado de ignorância e mudez. tenho na memória, facilmente o revejo, o acto de estar a ler uma história de um cisne negro, na altura em que esgotaste, na minha cabeça, os misteriosos termos da língua portuguesa. o cisne aprendeu, depois de inumeráveis dias de cativeiro, na história por mim inventada, como se encontrava a sua liberdade à distância objectiva do seu pescoço esguio. se o esticasse, ficava livre. no instante em que chegou a essa conclusão, o lago mostrava-se-lhe absolutamente cercado de uma atmosfera brilhante, como as ideias dos génios, e de um verde escuro, como a cor das florestas mágicas, e parecia-lhe tão grande como um mar, um oceano incontaminado pela presença do homem. então o cisne, sentindo-se fechado, solitário, prisioneiro do espaço proporcionável ao tamanho da sua vida insignificante, esqueceu tudo e mirou-se como um narciso no espelho da água clara. a sua vaidade matava-o lentamente, na aflição de contemplar a sua fealdade nua, desprotegido pelo desconhecimento. eu inventava a história que lia e ela não tinha importância nenhuma, mas era suficientemente interessante para me manter ocupado, enquanto tu, desfigurada da tua beleza sublime, por força das sombras da tarde, disfarçavas-te em julieta e chamavas por mim, pronunciando os nomes mais doces do mundo. davas-me beijos com um paladar a laranjas, a tamarindos. recordo como me prostrava então, no chão do crepúsculo, para meditar noutras coisas, sobre umas folhas de castanheiro, escutando o ruído das fábricas ao longe, a avisar o fecho, como se brincassem musicalmente com as suas diferenças de ritmo e de ecos. despertava de seguida para escrever um poema sem pés nem cabeça, dizendo como amo os teus braços níveos. escrevia a lápis faber: os teus braços são belos como a neve quente. amo os teus braços e eles estão junto de mim, muito perto da minha alma. depois apagava tudo, devagar, com uma borracha azul-marinho. em cima do rasurado voltava a escrever os mesmos versos e acrescentava: custa-me desencadear agora uma ausência que antes me parecia necessária e via, de seguida, como agonizava em busca da poesia, nas linhas com que enchia o texto. e continuava: é inevitável deixar o barco do teu querer navegar pelos montes pintados de lilás e lançar a âncora certa, no meu abrir as portas, extasiado, ao desbravar das artes absurdas, coladas com pólen de margaridas, nas tuas fontes de musa, ou nas palavras que começavas a calar, inconscientemente, sempre dentro da minha cabeça. não sei se adormeci, quando ocultei que sofria por constatar que havia um rio, transparente, de confissões, para vestir o branco das páginas deste meu minúsculo diário, um diário com capa marmórea que, na verdade, não existe. mas salvei-o na mesma da sua inutilidade e fechei-o. hoje mesmo. algures na viagem do último raio de sol, etéreo, sobre as acácias vermelhas do dia.

JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES

JAG
Enviado por JAG em 05/09/2008
Código do texto: T1163635